Palheiro do Tonico (Onévio Zabot)

 

PALHEIRO DO TONICO

 

É de Euclides da Cunha — no grande livro Os Sertões —, a máxima: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Tonico, o lavrador, certamente um deles.  Com seus 94  anos bem vividos, ali estava acocorado, escovava um filtro de aspirador de pó.  Simpático e cativante como sempre. A surpresa, no entanto, para mim — embora os janeiros rodados —, não larga o cigarrinho de palha. O melhor tabaco. Aroma à solta.  Designers de lavrador. Atrevo-me a provoca-lo. — Nossa, pitando!  — Bom demais, pondera.   Espanta mosquito. Vozeirão de locutor.  Sorriso largo. Tragada sorrateira.  Traços de italianidade à vista. E sobe a fumaça, avoluma-se, enovela-se,  fuligem aveludada no ar. Espirais d’outrora, as mesmas espirais de agora.

E incisivo emenda:

— Como filho mais moço — o caçula da ramada Botura —, herdei esse hábito.  Arrimo de família.   Para espantar mosquito nada melhor do que um palheiro esperto. E pasmem(!), incentivos nunca faltaram: — Fumaça neles, “maledetos” …!  Motivação familiar. E põe mosquito naquela época — década de 1954 —, sertões paranaenses.

A família Botura — geração de pioneiros, procede de terras paulistas —, adentrou na região,  freguesia de Iporã, noroeste paranaense na largada do povoamento.  O cenário de então, inóspitas quebradas, sertão a perder de vista. Vastidão mesmo. Espigões e baixadas. A única certeza: tudo por fazer: abertura de estradas e carreadores, derrubada de matas. Construção de residências e  galpões. Formação de lavouras e pastagens. E o escambau.

Primeiro chegaram os três irmãos mais experientes, os mais velhos  para erguer moradias.  Isso no vilarejo. Depois, os demais. E o patriarca. Família unida. Bons de lida. Coragem a olhos vistos. O plano: abrir a mata virgem e plantar café. Café, o tesouro de então. E sabiam fazer isso com maestria, pois em terras da Paulistânia, terra dos soldados verdes de Cassiano Ricardo, cafezais e mais cafezais cobriam os  horizontes.

Tonico faz questão, no entanto, de ressaltar: — Fomos alertados por um austríaco. Após abrir e ler um mapa meteorológica, nos alertou: — Lá para onde vocês pretendem ir não é região de se plantar café. Risco de geadas intermitentes. Vejam o mapa. De nada adiantou o alerta. Partiram rumo ao novo eldorado. Outros, muitos outros também.  Levas e levas de forasteiros. E deu no que deu, geadas. Muitas geadas. Até geadas negras. O fim de tudo.

Tonico de memória prodigiosa reporta-se a fatos marcantes.  Fatos e feitos. Um deles: a construção do Colégio Nossa Senhora Aparecida. Cinquentenário, ainda está lá. Intacto.  Construção  com peroba, madeira nobre da Mata Atlântica. Tão abundantes que se tocavam nas copadas. E enormes, diâmetros colossais. Únicas ferramentas: serrote, machado, foice, mareta e cunha. Sorte, as primeiras serrarias facilitavam a desdobra. Antes delas, era na base do muque: estaleiro e dois serradores.

Evoca a figura do Padre José Stefanello, missionário  palotino da gema. O obstinado sacerdote  recorria aos agricultores e  donos de serrarias;  pedia toras para construir a Igreja Matriz e a escolinha das Irmãs do Sagrado Coração de Maria.

Tonico trabalhava na Serraria do Luíz Bosso, depois prefeito. Dia daqueles chegou novamente o padre José. Precisava de mais  madeira. Pedinchão como sempre. Tonico aponta duas toras ali no pátio: uma mais grossa e a outra mais fina. O sacerdote se revolta: — ora, tora fina, isso não é tora, é palito de fósforo. Essa não aceito. Tonico, brincando, mas sério contesta: — Então não leva a grossa.

— Curvando-se, padre José cede. Pede para serrar ambas. Figura enigmática o padre José, enfatiza Tonico. Ajudou a erguer tanto a Igreja quanto a primeira escola na freguesia. E quando precisava — palavras de Tonico que presenciara a cena —, arregaçava a batina, a prendia nos ombros, e ia à luta. Cena pitoresca. Naquela época a batina era a marca registrada dos sacerdotes. Indumentária mística. E a missa?  A missa  era em latim. Ninguém entendia patavina, mas sobrava fé. E como cita a bíblia: “ A fé remove montanhas”.

Tonico lembra do irmão mais velho, o Evilásio. Era um polivalente. Gênio da família. Carpinteiro de mão cheia. Montava máquinas de beneficiar grãos (café e cereais). E músico. Tocava sanfona. Em terras paulistas, fez parte da Banda:  Os Boturas. Baile onde o Evilásio e os irmãos tocavam, entupia de gente.

De passagem pela boa terra para prestigiar evento cultural  fiz questão de visitar o amigo João Hélio, filho do Tonico.  João Hélio, personagem cativante.   Bom de bola. Jogou nas principais equipes da região. E por amor à lavoura e à família, não se profissionalizou no futebol. Convites não faltaram, inclusive do Cascavel Esporte Clube. Sequela daqueles bons tempos: recupera-se de uma cirurgia no joelho. Rompimento de ligamentos cruzados.

João Hélio só lamenta que daquela ramada dos Botura, apenas ele continua  firme na lavoura. E nada mais a ver com o passado. Do café migrou para a soja e a mandioca. Tudo em grande escala. Os tempos são outros. E questiona:

— Às vezes fico pensando: quem vai continuar produzindo alimentos. A juventude evadiu-se. Sua esposa, balança a cabeça. Consente.

O campo, a menos que ocorra um fato novo, está com os dias contados. Mudanças à vista. Faltam herdeiros. Eis uma boa pergunta que carece de uma boa resposta.

Tonico, no entanto,  nem aí. Esbanja energia e carisma. Informa que adora ler.  Nem precisa de óculos. Entrego a ele meu último livro: Gabiões do Piraí.

Ato contínuo,  faz questão de acender mais um palheiro, este especial, pois é para um  self histórico.

Alvissaras, Iporã!  Saudade danada de boa. Inté mais Tonico e João Hélio, amigos de jornada.

 

Joinville, 26 de outubro de 2024

 

Onévio Zabot

Engenheiro Agrônomo

COMPARTILHE: