Pavana para um setembro defunto (Joel)

Pavana para um setembro defunto
Joel Gehlen
A mulher parou no susto, deixando o carro enviesado na direção contrária. A menina estica o pescoço em viva curiosidade no vidro de trás. Arcado, passos arrastados, muito lentamente o gambá atravessa a pista. Parece que sofreu um atropelamento. A perna esquerda se arrasta. Estacionei e fui pegá-lo. Primeiro passei o dedo sobre a pelagem da testa para dizer que era uma abordagem amistosa. Ele não disse nada. Depois peguei com as duas mãos pela barriga. Ele se enrodilhou como um feto. Não tinha sinal de sangue. Tratava-se apenas um ser atingido pelo tempo, um gambá velho. Muito velho e cônscio de que já cumpriu a sua missão.
Espalmo as mãos abertas para que fique mais confortável nos dedos entrelaçados. Ele se aninha em latente quietude. Uma ciclista para condoída, sugere que leve ao veterinário. Respondo que os pets não aceitam gambas. O tempo pra ele se tornou uma gangrena sem lenitivo. Faço um exame detalhado. A perna esquerda tem uma ferida aberta, vê-se que não é um machucado recente. O pelo está ralo e duro, os dentes descarrilham as mandíbulas e as presas amareladas e gastas escorregam para fora da boca. Tem unhas grandes e retorcidas, inúteis para agarrar. As juntas dos dedos, das patas e pernas, arqueadas dentro do inchaço, apresentam avançado estado de artrite. O olho esquerdo está vazado e seco. É um ser destroçado.
De certa forma, aquele estado de escombros é o seu troféu. Um sobrevivente. Pensei nos monges que, ao cabo de comprida jornada, são agraciados com o anúncio do fim. A morte vem buscá-los com generosa delicadeza. Sem pressa, convidam-se para sentar, e alongam conversas, como se ela fosse uma amiga íntima, retornada após longa ausência. Com amabilidade trocam impressões sobre o que se passou, e ajustam detalhes a respeito do próximo passo. Assim, com mãos descabidas de pressa, velo os instantes finais do marsupial. Por algum tempo ouço a flauta da manhã que sopra um silêncio grave. Por fim, ele tomba. Deposito o corpo já sem alma nem dor sobre o tapete florido de um ipê que exprime gotas de adeus. A metáfora da morte me acompanha. Está nesses dedos que doem e escrevem, nos olhos que ardem e leem, na primavera vestida de luto. E nesse setembro. O primeiro setembro que ouço partir dizendo que não queria morrer.

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