Perséfone, a grega (David Gonçalves)

PERSÉFONE, A GREGA
[uma grega em Quadrínculo]
David Gonçalves
Nosso pai, quando fez 70 anos, endoideceu. Nossa mãe morrera. Guardou quarentena, roupa preta.
Até aí…
O que veio, coisas do demo. Vendeu uma parte da fazenda e fez algumas inusitadas viagens.
Grécia, Roma, Buenos Aires, Disney, África do Sul e… Até aí eu e minha mana aprovamos. O velho, pelo menos, não se afundara no infindável luto.
Ah, a surpresa: certa tarde chuvosa, barro vermelho mole, a cidade de Quadrínculo ferveu. O velho foi na padaria São João, antiga na cidade, com uma mulher muito bonita, cinquentona, linda lindíssima, corpo torneado, feito espiga de milho. Falava numa língua desconhecida. Parecia que tinha um caroço de pessego sob a língua. Isto causou muito espanto nos habitantes, que riam, cochichavam, galhofavam.
Zum hummm e muito zum. Meu pai passeando na avenida como adolescente, feliz, e as más línguas detrás das janelas. Quando soubemos, pela Internet, rapidez da luz, ficamos de orelhas espertas. No tempo das velhas cartas e correios demorados, o fato teria perdido importância, mas nos tempos modernos as notícias correm na velocidade da luz.
Minha mana veio de Nova York e eu de Buenos Aires. Apressados, como se fosse um enterro de última hora. Salvar nosso pai. A gente gostava muito da mãe, todo dia na cabeça. Salvar ou internar o velho.
Eis o que vimos: o pai tinha remoçado mais de vinte anos. Pintara os cabelos brancos e se umedecia com cremes, e água de colônia. Ria, divertia-se. Humor à flor da pele. Via passarinho verde.
Olhei pra minha irmã. Ela repuxava a orelha esquerda e piscava, incontinente, o olho direito, nervosa…
– Oh pai, essa mulher… pode ser.
– Ah meus filhos… encontrei o chinelo certo. Respeitei tua mãe. Mas encontrei o amor.
– Mas…
– Não se deve negar o chamado do amor. Viver só é uma bosta.
– É muito perigoso, entende?
– Perigoso é viver como torneira seca.
– O que sabe da vida dela, diga. Foi encontro ás cegas.
– Ah, filhos, coração é terra que ninguém pisa.
Nada mais disse. Calado, os olhos verdes brilhavam.
Estávamos mudos. Minha irmã estava no terceiro casamento. Eu, na vida, viajante do mundão. Só e acabrunhado. A gente também andava á procura do encantamento. Passou-me pela cabeça que a fruta nunca cai longe da árvore.
O que fazer.
Chamava-se Perséfone. Estranho nome. Deusa do submundo, me informei. Minha irmã ria, nervosa. Se fosse Gaia, a deusa da terra, combinaria melhor com o pai fazendeiro. Ah, e se fosse Artemis, a deusa da caça…
Contratamos um detetive para investigar a vida pregressa daquela mulher. Pente fino. Retornamos aos nossos destinos. Sempre com a cabeça nas possíveis façanhas de nosso pai. A gente sabia de tantas histórias de velhos solitários ludibriados por jovens mulheres
Enfim, distantes, recebemos a ficha do detetive. Estava no Brasil há um ano. Era Grega. Não era procurada pela Interpol. Em seguida, recebi uma chamada de vídeo de meu pai; alegre e faceiro, desejava passar todos os bens para nós, com uso e fruto, e precisava de nossa presença. O velho queria evitar problemas futuros. Isto nos deixou aliviados. Se aquela mulher fosse ave de rapina, a famigerada Artemis, perderia o bote.
Assim, retornamos a Quadrínculo. Recebemos os bens. No varandão, já relaxados, nas antigas cadeiras de repouso, o velho confessou;
– Vamos à Grécia. Aquela terra me encanta. O sol, o mar, aquela gente tão hospitaleira. Por um ano, pelo menos. Perséfone não consegue viver longe da Grécia, embora se diz louca pelo Brasil.
O que o amor não faz, pensei.
– Ela recebeu uma herança. Quer voltar. Esta cidade é muito pequena para os nossos sonhos.
Depois dos setenta anos, o velho tinha sonhos, arre. A maior parte dos velhos em Quadrínculo vestia cinza e bebia nos botecos, desesperançados.
Ela surgiu no varandão, risonha, e abraçou o velho, apaixonadíssima.
– My Love, my life – e o beijou com carinho.
Subia uma lua encorpada sobre o arvoredo. Havia o cheiro adocicado das laranjeiras em flor.
No dia seguinte, eu e minha irmã retornamos – ela, para Nova York; eu, para Buenos Aires. Havia, ainda, amor no mundo.
Semanas após, eles partiram á Grécia. Quadrínculo era chão desgastado que não nos cativava.
COMPARTILHE: