Prédio da esquina ou do meio da quadra

Quando chegou à casa do professor, do portão, ouviu os sons do piano. Anoitecia rapidamente. Bateu à porta e o professor, deixando o piano, veio prontamente recebê-lo. O longo e magro crânio por baixo de um chapéu de pano deixava-o parecido com um réptil encapuzado. Os olhos tinham, também, um brilho e uma expressão de lagarto. Olhar caído e reflexivo revelava uma alma ressequida, pungente e amargurada. Aborrecera da História. Os vencedores e dilapidadores a contavam como queriam. As verdades estabelecidas eram ditadas na base da espada e canhões sanguinários. Na História moderna, a bomba atômica… Até mesmo Heródoto, o pai da História, ficaria horrorizado com a História latino-americana. Ditadores contratavam os melhores historiadores e narravam o que bem queriam, tantas coisas fantasiosas, do ouvir dizer às mentiras elaboradas. Um tecido de mentiras…

Pobre Cícero! “A História… testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, arauto da antiguidade.” Dizia isso porque não sabia da História do Brasil e dos países latinoamericanos.

– Vive-se a História de hoje como um pesadelo do qual cada vivente está tentando acordar…

Era, pois, um homem que não mais acreditava na História. Para ele, a História era a ciência da infelicidade. Ela era feita mais com interpretações do que com dados. Era feita tanto pelos que venciam as lutas e detinham o poder como pelos que as descrevem.

O que lhe restava, então?

Sozinho na casa, longe do burburinho dos alunos, tinha a música como companheira. Mas, depois que os estranhos haviam quebrado suas mãos, tocava o piano com dificuldade, cometendo falhas, lacunas, e isto o deixava ressentido.

– Chá? Café? Água?

Gabriel optou por chá.

– Prefiro café. Fico mais aceso. Mas tenho insônia.

Seguiu-se uma conversa alheia e desencontrada. Sobre lavouras, o que plantavam na propriedade? Só café? Cultivavam horta? Vendiam na feira da cidade? Quantos irmãos? Nossa, dez irmãos! Que ninhada! Haviam estudado? Não. Todos viviam da terra. Ele era o caçula? Sim, a rapa do tacho.

– Sítio, o paraíso… Benditos os filhos da terra – exclamou o professor. – Os filhos do asfalto se distanciam cada vez mais da terra, nossa mãe. Em breve, o homem abandonará o campo e viverá na podridão das grandes cidades, em apartamentos minúsculos, casas de pombas, ou em favelas periféricas.

Gabriel sentia-se intimidado, ave fora do ninho. Olhava as paredes e via telas de diversos pintores, paisagens, caricaturas e homens e mulheres nus. Sobre a mesa, diversos livros de música, abertos.

– O que acha desses quadros? Interessantes?

Apreciava uns, achava outros ruins. Não sabia diferenciar a arte boa da ruim. Os quadros de nus chamavam sua atenção. Mulheres antigas eram gordas, rechonchudas, sem quadris…

– Ah, o livro… Vamos falar sobre literatura, então.

Fumava um cigarro atrás de outro, e xícaras e mais xícaras de café,  a sala rescendia a café e cigarros.

– Seu romance parece uma colcha de retalhos – foi dizendo, enquanto baforava. – Tem altos e baixos.

Colcha de retalhos? Referia-se aos capítulos?

– As influências estilísticas, rapaz. Dá pra perceber, passo a passo, conforme o enredo avança, diversos autores presentes. Bons autores, sem dúvida, mas eles estão ali, feito missa de corpo presente. Ah, bem imitados, diga-se a verdade!

– …?

– O bom leitor percebe Machado de Assis aqui, Eça de Queirós, Monteiro Lobato por lá, José Lins do Rego mais adiante, Jorge Amado, Graciliano Ramos… Só gente boa, mas estão ali vivos. Dá pra sentir até o cadáver de José de Alencar! E tem os estrangeiros também.

Uma carroça cheia de sacos de café dobrou a esquina, na rua calçada de pedras, e abafou as insinuações do professor. O rangido estridente dos aros de metal das rodas barulhava de encontro ao eixo.

– Me entenda, Gabriel, não se trata de cópias, mas de imitação estética inconsciente. Você leu esses autores e gostou, e teu subconsciente assimilou. Todo mundo faz isso de começo. Mas, depois, a gente tem que se livrar dos mestres e criar o próprio caminho.

Fumava e baforava e bebia café. A sala estava esfumaçada. Mantinha as janelas fechadas. Havia cheiro de bolor.

– É isso o que você quer?

Não sabia o que responder.

– Você quer ser escritor mesmo? Ou é apenas fogo de palha? Um desejo passageiro?

Outra carroça rolou no calçamento de pedras e a casa foi tomada por outro rangido estridente.

– Muitos jovens escrevem poesias porque estão apaixonados, mas não têm o dom. Escrevem porque se acham tomados pela paixão volátil. Depois tudo passa e a realidade se impõe. É o seu caso?

Não sabia o que dizer. O cuspe secara na garganta. Havia um nó no pomo-de-adão. A língua ficara presa, a boca amordaçada.

– Mais chá?

Não queria. Meneou a cabeça como boi velho chacoalhando as grandes orelhas enrugadas.

– Decida. A Arte não é pra todo mundo.  Não é amante compreensiva. Ah, se eu pudesse ter dedicado a vida à Arte! Tive que abraçar a História como sustento, mas a Arte está acima de todas as ciências – calou-se, encheu a xícara de café, tragou o cigarro. – É a vida.

Mais uma vez, Gabriel observou que o longo e magro crânio por baixo de um chapéu de pano deixava-o parecido com um réptil encapuzado. Os olhos tinham, também, um brilho e uma expressão de lagarto. Olhar caído e reflexivo revelava uma alma ressequida, pungente e amargurada. Sozinho, naquela casa, entre xícaras de café e dúzias de cigarros, deixava-se roer pela insônia. Talvez se sentisse como um condenado que não pudesse espantar dos olhos o verme que o roía.

– E pensa viver de quê?

– …?

– Da literatura? Trate de arrumar uma profissão que sustente o esqueleto. Ou, então, será mais um a rolar pelas sarjetas. Acredite: neste país, quase ninguém lê. Os ricos de nossa região se vangloriam por não terem ido à escola. Pra que escolas? Dinheiro, eis o que importa. Não me assustaria se, algum dia, tivéssemos um presidente da Nação sem estudos, que viesse a se vangloriar que nunca leu algum tipo de livros…

Outras baforadas.

– Sou professor, mas, antes de tudo, músico. Nasci pra isso. Mas é o salário de professor que me sustenta. Estaria na sarjeta, mendigando, se dependesse da música. Veja estas mãos.

Suspendeu as mãos. Estavam trêmulas.

– Estão quebradas. Mal consigo executar algumas peças musicais. Quebradas!  Por imbecis!

– Quem as quebrou? Não foi acidente?

– Ora, quem? Essa gente do Governo, que detesta quem possui ideias. Mas estou vivo. Isso que importa.

Longo silêncio. Mais café, outras baforadas.

– Seja o que for, rapaz, não desista dos seus sonhos. Não faça como eu fiz. Siga o caminho. Estou velho, as mãos quebradas. Você, não. Não abandone o teu ideal. Mas cuide do esqueleto. Do contrário, passará fome.

Outro silêncio se fez.

– Gostei do que escreveu. Mas o caminho é longo, com mais espinhos do que flores. Um galho de roseira para produzir algumas rosas possui centenas de espinhos. Ao desejar uma flor, a gente sempre se fere, e o sangramento, às vezes, é brutal, deixa marcas difíceis de serem apagadas. Mas, se quer ser escritor, não seja como prédio de esquina.

– …?

– Seja prédio do meio da quadra.

– …?

– Prédio de esquina tem muita fachada e poucos fundos. Já o do meio da quadra tem pouca fachada e muitos fundos. Conteúdo, rapaz! Livre-se da verborreia.

Calou-se pesaroso, quase sem fôlego.

– Agora, vá. Quero remoer os meus fantasmas.

Havia tristeza e esperança em seu rosto

.  .  .

 

Não havia lua.

Ah, gritou: que Deus, o senhor barbudo, de cajado, me ajude a conseguir o impossível.

Muros, barreiras, montanhas, encostas, rios revoltos. Ah, gritou: só o impossível me importa. E o grito ecoou sobre o vale – cidades, cafezais, pastarias, riachos, capoeiras, pedreiras, lodaçais, pirambeiras.

Não sabia o que queria dizer com isso. Estava, porém, decidido. Que as estrelas, brilhando no Infinito, escutassem seu apelo aflito.

Mas o que sentia, enquanto caminhava dentro da noite, era tão indizível e intransmissível como a solidão do vasto Infinito. Tantos mundos, todos ordenados, e ele, na rua semiescura, na solidão, cegamente, perdidamente, tateando às palpadelas.

Tão vasta a noite. Tão despovoada. Tão silenciosa. Ele, o presunçoso Gabriel, à procura do nada.

Montanhas tão altas. Muros tão altos. Barreiras tão altas. Sonhos tão altos. Ah, gritou: vinde a mim a coragem! E isto me bastará…

Cai o silêncio sobre a cidade e os campos. O vale se aquieta. As ruas brilham sobre o asfalto escuro e brilham já vazias, solitárias. Apagam-se as luzes das casas e os postes, um ou outro, iluminam o silêncio. Os cães estão dormindo. Os homens estão dormindo. A vida se aquieta.

Não há lua no céu. O ar dentro dele tem cheiro de poeira molhada; o ar da noite escura também. O espaço escuro e profundo estava todo pontilhado de minúsculas estrelas. Parecia que estavam em eterna vigília. E a Terra girando, girando, crestada de montanhas e mares em movimento.

Diante dele, o grãozinho de terra, partícula esparzida no ar, a luta pela sobrevivência envolvida em tantos mistérios. Enquanto pensava, caminhava, e os outros habitantes da cidade e dos campos dormiam o sono dos justos. Por que ele não era igual a todos eles? Por que criava e sustentava grilos trinantes na cabeça? Sim, era um tolo. O homem são não faz tantas perguntas e muito menos cria grilos trinantes na cabeça.

Ah, gritou: uma colcha de retalhos, a sua criação. Para ele, tudo estava escuro, como o Infinito. Tão escuro. Tão nebuloso. O beco sem saída. Escrever, ofício de solitários, de almas sofredoras, desencontradas.

– Estou disposto a viver a escuridão dos solitários?

Suportaria?

Oh, Senhor, construtor dos mundos! Estou perdido neste mundão, ao deus-dará. Há tantas pedras no meio do caminho. Luz, Senhor, mostre as veredas e, então, eu seguirei.

Ah, gritou: meus sonhos são mais altos do que os muros, as muralhas, as montanhas, as encostas. Ah, Senhor, construtor de mundos…

 

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