Preponildo Calado da Silva
O Médico pediu para ele abrir a boca e dizer um “a” bem forte. E assim foi feito:
– Aaaa…
Nada sentia. Não entendia por que estava ali, acompanhado de esposa e filhas, para mais uma consulta médica. Era culto, inteligente. Um tanto quanto monossilábico às vezes. Abusava de advérbios, adjetivos, preposições. Daí surgiu seu nome.
Mas quando ia começar a falar:
– Ante…
Era sempre interrompido. O médico o interrompeu já na primeira palavra. Ia dizer que não tinha nada na garganta, como o médico provavelmente teria enxergado, ao abrir sua boca.
O doutor pediu para que ele saísse da sala, pois queria conversar com sua esposa e filhas.
– Até!
Saiu e ficou na recepção, aguardando. Imediatamente uma recepcionista veio lhe oferecer café, indagando se queria com ou sem açúcar.
– Com – respondeu ele.
Até reconheceu que foi meio ríspido com ela, mas já estava exausto de ir a tantos médicos para o tratarem daquele jeito, tudo sempre às escondidas. Parecia até que a família estava contra ele.
– Contra! – bradou em voz alta, recompondo-se logo, ao ver que seus pensamentos saíram de forma verbal e não silenciosa, como deveria ser, atraindo o olhar de todos.
Um homem sentou-se ao seu lado e perguntou se ele passava bem. É claro que estava bem, oras! Mas que pergunta idiota. O homem se apresentou, mas ele mal prestou atenção ao nome, ouvindo apenas a primeira sílaba. Resolveu dar corda:
– De o quê?
O homem respondeu Dejair. Falou ainda que aguardava o médico, como Preponildo, relatando sua história de vida. Uma chatice. Iria dar um basta naquilo com uma pergunta sórdida:
– Desde…
Não deu tempo. O médico abriu a porta e chamou-o de volta ao consultório. A pergunta? Ora, caro leitor, fica a seu critério imaginar uma questão que poria fim à conversa. Mas isso não vinha ao caso no momento. O caso era sério. Ou parecia ser.
O médico pediu-lhe para sentar. As filhas e a esposa olhavam-no com pesar, como se ele tivesse poucos dias de vida. E se tivesse?
Bom, melhor perguntar logo em quanto tempo iria morrer e pronto, acabava esse mistério todo:
– Em…
Mal teve chance. O doutor já fez outro gesto para matar sua pergunta na raiz. E, de pronto, começou a explicar que ele estava muito doente e que não tinha tanto tempo de vida quanto imaginava ter. Alguém bateu na porta:
– Entre!– falou Preponildo, inesperadamente para todos.
Agora ele foi mais rápido que os demais. Até que enfim!
Isso deixou-o muito feliz, pois nunca conseguia falar com ninguém, pois todo mundo o interrompia.
Era a recepcionista do café com açúcar. O médico pediu a Preponildo que a acompanhasse até outra sala.
– Para?
Era para fazer exames. As filhas desataram a chorar e a esposa ficou muito pálida. Ele seria submetido a alguns testes específicos.
Bom, o que podia ele fazer? Obedecer, naturalmente. Há muito tempo não sabia o que era mandar, ninguém o obedecia em nada, há anos. As filhas já casadas, o casamento de 35 anos, a aposentadoria, o único homem da casa: tudo isso o deixava em condição hipossuficiente.
Acompanhou a recepcionista, que lhe garantiu que os testes seriam bem simples. De fato, começaram com coisas tão ridículas que não faz o menor sentido descrevê-las ao leitor.
Mas é bom dar ao menos um exemplo, para que se tenha ideia da patuscada em que ele se meteu. A recepcionista, que lhe revelou ser enfermeira, fechou a mão atrás do corpo e começou um jogo de par ou ímpar:
– Par! disse ela.
Para se divertir, ele não teve dúvidas e lascou:
– Per!
Ora, óbvio que era para dizer “ímpar’. Mas estavam achando o quê? Que ele era louco? Convenhamos, uma brincadeira de criança tão boba devia ser respondida à altura, ainda mais que ele já era um senhor passando dos sessenta anos.
Seria divertido se ela continuasse com um “pir”, pois aí ele diria um “por” e terminariam com um “pur”.
A enfermeira fez algumas anotações. Olhava para ele como se tivesse pena e rabiscava rápida o seu caderno, como se estivesse com o tempo contado.
Perante…
Foi interrompido de novo. Ia questionar se, diante de todos aqueles testes infantis, podia-se achar sentido. Com seu ar formal, ele abusava, como dito alhures, de formas verbais pouco utilizadas na língua portuguesa. Mas a enfermeira disse que ele não poderia falar ali naquele ambiente. Só quando ela mandasse.
– Por…
Nova pausa. Desta vez do próprio paciente. Ora, queria saber o motivo, o porquê de tanta frescura em relação a um exame tão banal. Mas lembrou-se do recado e resolveu calar-se. Aliás, era bem isso que ele vinha fazendo durante quase toda a sua vida. Era só mais um Silva entre tantos brasileiros.
Voltou ao consultório com a enfermeira e notou o médico e a família já com outra cara. Melhor, ainda bem. Parecia que o médico já sabia dos resultados dos exames realizados pela enfermeira. Duvidou de tanta agilidade, mas, nos dias de hoje, quem sabe…
O doutor abriu uma caixa de remédio e pediu-lhe para tomar um, oferecendo-lhe água.
– Sem.
Respondeu secamente, já que nunca tomava remédio com água, usando apenas a própria saliva. Criado no interior, não tinha espaço para tanta frescura.
Quanto ao remédio, não adiantava mais questionar. Não mandava em nada mesmo! Engoliu em seco.
O médico ainda fez um pequeno teste. Colocou as mãos por debaixo da mesa e perguntou-lhe se estavam sob ou sobre a mesa.
– Sob.
Só não lhe ocorreu responder “sobremesa”, pela esposa e filhas que ali estavam. Também, o clima não ajudava, mais parecia um velório, de tão sérios que todos estavam. Respondeu o que tinha que responder, mais parecia jogo de português.
Resolveu questionar:
– Sobre…
As filhas o interromperam. Mas ele queria saber era sobre… o remédio que acabara de tomar. Pelo menos a isso tinha direito. Mas elas passaram as mãos em seus cabelos já brancos e poucos, dizendo-lhe que em casa conversariam melhor.
É. Já não mandava em nada. Agora, nem mesmo em si.
Passaram-se dois anos.
Preponildo Calado da Silva continuava o mesmo.
Firme e forte em seus pensamentos, refletindo no que fez, no que fará. Feliz por estar bem, consciente de que nunca estivera tão bem.
A cadeira de rodas em que estava, contemplando a Serra do Mar, era invenção das filhas, que cuidavam tão bem dele.
Não precisava mesmo, mas elas faziam questão. Bom, por elas, tudo. Sempre foi assim. Sempre será.
Não demorou muito e veio a filha mais velha, perguntando se ele queria tomar o tal remédio.
Resumiu:
– Traz.