Quando tudo começou a ficar sério (Paulo Roberto da Silva)

 

Quando tudo começou a ficar sério

Paulo Roberto da Silva

 

Agosto é o mês do estudante e 11 de agosto é o seu dia. Isso me fez recordar do meu primeiro dia de aula, quando tudo começou a ficar sério na minha vida.

O ano era 1974… e lá se vão exatos 50 anos!

Em Roma, o Papa era Paulo VI, de nome predestinado, com quem minha mãe não simpatizava, dizendo ter “olhos de águia”. E ele tinha mesmo! Em Joinville, o bispo era o bonacheirão Dom Gregório, um amigo a quem meu pai imitava com uma fidelidade ímpar, no seu sotaque característico.

O país experimentava os últimos dias do governo do presidente Médici, a quem cheguei a conhecer na sua visita a Joinville, anos antes, quando desfilou em um Ford (um Galaxie ou um LTD) pela Rua Padre Carlos, parando logo adiante de nós, junto ao prédio da antiga Prefeitura (demolido com o surgimento da Avenida JK). Era o tempo dos “lemas patrióticos”, do “Brasil ame-o ou deixe-o”, do “Eu te amo meu Brasil, eu te amo” e do “Ninguém segura este país”, que viraram adesivos nos para-brisas dos carros e principal tema dos álbuns de figurinhas que colecionávamos.

Quanto a mim, iniciava os estudos no Colégio Santos Anjos, no que era conhecido como “curso primário”. Era o meu primeiro ano!

A vontade dos meus pais era de que eu fosse estudar no Colégio Bom Jesus, cujo ensino era considerado o mais forte da cidade, mas surgiu um pequeno problema: no 1° e no 2° anos do primário do Bom Jesus só existiam turmas no período matutino (apenas os 3°s e os 4°s anos funcionavam no turno vespertino), e eu era… preguiçoso demais para acordar cedo!! Já no Santos Anjos, todos os anos do primário tinham turmas nos 2 turnos: tanto matutino quanto vespertino.

Assim, foi batido o martelo da seguinte forma: eu faria o 1° e o 2° anos no turno vespertino do Santos Anjos e, depois, o 3° e o 4° anos no turno vespertino do Bom Jesus.

Nem uniforme tínhamos ainda, naquela semana inicial de aula, mas lembro bem do antigo prédio onde funcionava o meu primeiro Colégio: era uma sólida construção  inaugurada em 1914, com suas duas torres pontiagudas e uma grande porta central em arco antecedida por uma grade: a mim, parecia a entrada certa para a masmorra de um velho castelo… Hoje, lamento que aquele belo prédio histórico tenha sido demolido pouco tempo depois, também por causa da abertura da Avenida JK, que engoliu a maior parte da rua São José (que separava o colégio da Catedral) e as construções que estavam pelo caminho.

De qualquer forma, e conforme me assegurava minha avó Jenny Krüger Stricker, meu próprio avô havia estudado ali, nos anos 1920 (e ela apontava até mesmo a janela da sua sala, no andar de cima, na lateral direita do antigo prédio). Ele fora um excelente aluno, dizia minha avó, e desenhava muito bem. Ela talvez tenha ocultado, gentilmente, algumas traquinagens do meu avô que (descobri depois) fizeram-no ficar de castigo algumas vezes, ajoelhado no milho, dentro de um diminuto vão, encerrado por uma portinhola, que existia debaixo da escada que unia os 2 andares do prédio…

Mas, voltando ao meu primeiro dia de aula e diante da entrada monumental do prédio, engoli em seco, subi a escadaria de acesso e passei pela porta em arco. Nossa diretora era uma religiosa: Irmã Clea. E nossa primeira professora era Da. Myriam Schmidt, um doce de pessoa, que insistia conosco para que, na hora da lição de casa, colocássemos o caderno sobre a mesa, ao invés de ficarmos largados preguiçosamente sobre a cama, pois a letra ficaria feia! E acrescentava: “Eu conheço um anjinho que visita cada um de vocês e depois me conta se fizeram a lição de casa sentados junto à mesa ou esparramados na cama!”. Eu acreditava piamente nas palavras dela e me espantava com a sua capacidade de ter um amigo tão poderoso!

No início de cada aula, Da. Myriam nos pedia para que ficássemos todos em pé junto às nossas carteiras, para uma oração conjunta e em voz alta, que era sempre a mesma: “Menino Jesus, vem para mim, faça de mim uma boa criança, meu coração, é pequenino, cabe somente Jesus menino”. Dito isso, nós nos benzíamos e podíamos sentar. Como logo acima do quadro-negro havia um retrato emoldurado com o rosto de Jesus, eu me sentia como se Ele próprio estivesse me vigiando se eu não recitasse a oração corretamente…

Havia ainda a Irmã Yolanda, muito alegre e querida com todos, que vez por outra nos brindava com “santinhos” contendo uma mensagem sua manuscrita no verso. Para nós, era um reconhecimento de “bom comportamento”. Terminado o recreio, formávamos fila e, diante de todos, aparecia a doce Irmã Yolanda entoando uma canção, que começava com “Pedro, Tiago e João… num barquinho… no Mar da Galileia…”. Quase todo dia cantávamos essa canção ao final do recreio, fazendo uma espécie de mímica com as mãos para reforçar os trechos da música.

Naquele ambiente onde tudo era novidade para mim, lá estava eu, um pequeno luterano em meio a um colégio católico, cujas aulas de Educação Religiosa aconteciam no outro lado da rua, no interior da Catedral ainda em construção. Aliás, sentado junto à minha carteira eu me distraía vendo pela janela os operários caminhando sobre a cúpula para os trabalhos de pintura. Era para lá, enfim, que nós alunos seguíamos em caravana silenciosa e comportada nos dias da aula de Religião. Era um acontecimento! Lembro que ficávamos todos em pé no interior do templo, rodeando um religioso (provavelmente o vigário da Catedral ou outro sacerdote), de quem ouvíamos alguns ensinamentos e com quem aprendíamos as orações que ele, pacientemente, nos ensinava. Era tudo bastante formal. Graças a isso, contudo, aprendi as orações católicas que, lástima, causavam grande confusão nos cultos protestantes de domingo, quando eu me sentia um estrangeiro na minha própria pátria!

Nossas aulas se estendiam de segundas-feiras aos sábados: sim, em 1974 nossa semana de aula tinha 6 dias. Como nossa turma era vespertina, os sábados eram dias de suplício para mim, pois nesse dia específico as aulas eram no turno matutino, e isso para todas as turmas. Como resultado, para conseguir abrigar tanta gente num único turno, a turma do primeiro ano primário matutino ficava acomodada na “nossa” sala, enquanto que nós éramos deslocados para uma rústica sala de madeira, afastada do prédio principal, que me fazia sentir francamente miserável, principalmente nos dias de chuva, quando chegar até lá nos obrigava a percorrer um caminho em meio a poças d’água.

Naquele Colégio as aulas de inglês eram ministradas desde o pré-primário e, nesses momentos, saíamos da nossa sala e nos dirigíamos a uma outra, onde nos aguardava a professora de inglês que tinha uma estranha alergia ao giz, o que a obrigava a escrever no quadro-negro usando… luvas! Aprendíamos o idioma de forma muito lúdica, com aulas repletas de canções em inglês, das quais me lembro de “Hickory Dickory Dock”, “B-I-N-G-O”, “Ten Little Indians” e uma outra que falava das cores em inglês.

Tínhamos também aulas de música, que aconteciam numa terceira sala, no térreo, voltada para os fundos do prédio, onde outra professora nos aguardava junto ao piano. E nós, pequenos benjamins, espalhávamo-nos pelo chão para acompanhar suas lições.

Nossa sala de aula “oficial” possuía uma grande porta de entrada formada por duas abas, encimadas por uma bandeirola e, na primeira semana de aula, repentinamente surgiu um homem magro, muito alto e bastante curvado, que manquejava ao andar. Que os santos anjos me perdoem mas ele era o mais próximo de Quasímodo que eu já havia visto! Trocou umas rápidas palavras com nossa professora e, seguindo para a porta, fechou as duas abas com um sorrisinho que me pareceu sinistro! Pronto… alguma coisa de muito ruim iria acontecer, sem dúvida!

Aquele homem estranho, que trazia um tubo de papelão debaixo do braço, sacou um rolo de dentro do tubo, preso ao qual havia uma pequena corda que ele fixou em um gancho existente sobre a porta. Feito isso, deslizou perante nossos olhos um grande… mapa do Brasil! Eu nunca tinha visto um mapa na minha frente, a não ser nos livros! E nunca um tão grande!

Só nesse instante nossa professora esclareceu as coisas, tirando metade da graça: seríamos chamados um a um, em ordem alfabética, para seguirmos até o mapa onde cada um de nós seria… fotografado! Apenas isso! E se nossos pais aceitassem pagar 12 cruzeiros pela fotografia, ela seria nossa: imagine se algum pai ou mãe iria se recusar a pagar 12 cruzeiros para ter uma fotografia do próprio filho! O resultado está nessa imagem que aparece aqui: eu, nos meus 7 anos de idade, com uma camisa vermelha que tinha o rosto do indiozinho Havita estampado no bolso, na primeira semana de aula da minha vida! O uniforme só chegaria mais tarde: camisa branca de gola, calça bordô, meias 3/4 , sapatos pretos (tênis apenas nas aulas de Educação Física), e… uma maleta de couro  com alça, do tipo “executivo”, para guardar o material escolar. Não se usavam as “mochilas”.

E rapidamente 50 anos se passaram…

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