Ritinha
(do livro “A ESPERA E A NOIVINHA”)
Enquanto Dito Timbó procurava por Marta, os três filhos dele, Osmar, Bastião e Jeremias, igualmente matadores de aluguel como o pai, procuravam entrar em contato com Ritinha. Bastião era o mais interessado. Estava encantado com a ideia de ter uma irmãzinha criança de 11 anos e, ao mesmo tempo, extremamente penalizado com o que havia acontecido com ela, estuprada pelo padrasto. Este a havia machucado demais e ela, fugindo dele, acabara num posto de gasolina de estrada, onde, diziam ali em Barbalha, estava aprendendo a fazer a vida para poder sobreviver.
Osmar, o mais novo, também ficou muito sensibilizado com a situação da menina e dizia que, ainda que chegassem à conclusão que ela não era irmã deles, deviam fazer alguma coisa por ela. Tirá-la da estrada era o mínimo que deviam fazer.
Já Jeremias, o mais velho, era mais conservador, era o que mais se assemelhava, na forma de pensar, ao pai. Para ele, assim como para Dito Timbó, o caso de Ritinha era um caso perdido. O padrasto já lhe havia comido os tampos, portanto não era mais donzela. Ora, menina nova que não é mais donzela não pode dar em coisa que preste. Não importa que ela tenha sido descabaçada à força, resistindo e apanhando do agressor. O que importa é que não existe mais cabaço. Então o que ia impedir essa menina de andar por aí, dando para outros homens? Nada! O resultado é que ia arranjar barriga logo. Além do mais, mulher comida toma logo gosto pela coisa e quer sempre mais e mais. Acaba virando uma qualquer, uma desavergonhada que qualquer um enfia nela. Daí a se tornar puta, é só mais um passinho.
No caso de Ritinha, raciocinava Jeremias, nem tinha sido preciso esperar tempo algum. Nem bem o homem tinha lhe feito o serviço, a sem-vergonha já estava pelas estradas, vendendo o xibiu e o rabo. Ora, estava se vendo que não prestava mesmo! Se não fosse o padrasto, algum outro ia logo enfiar nela e fazer dela mais uma mulher arrombada. E porteira que passa um boi… Essa aí não tinha mais jeito, painho Dito é que tinha razão. Já tinha escolhido ser puta; e, se estava na putaria já há alguns dias, é porque queria. Devia gostar, a ordinária. Jeremias sacudia a cabeça, achava uma besteira o que queriam fazer aqueles seus irmãos mais moços, uns sentimentais sem cabeça, sem juízo.
Pois então painho já não tinha falado o que pensava sobre a menina? Que mesmo que lhe provassem, com esses exames de laboratório que estavam na moda agora, que Ritinha era sua filha, ele é que não ia querer saber de uma filha puta. Se ela escolheu esse caminho, azar dela. Pois que seguisse agora por ele. Ninguém tinha obrigado, foi para a sem-vergonhice por que quis. Esse era o pensar do velho Timbó, Jeremias assinava em cruz, rezava pelo mesmo catecismo do pai.
Mas aqueles meninos, seus irmãos mais moços, eram uns sonhadores sem juízo. Onde já se viu não seguir a ideia de painho? Por que perderem tempo atrás da putinha? Só se eles estavam querendo outra coisa: como a menina dificilmente seria irmã deles, vai ver que o que eles queriam era mesmo comer a tal putinha. Ainda mais que o povo dizia que ela era por demais bonita, uma formosura de rosto, com um corpinho que já tinha bunda empinada e pernas grossas, só faltava mesmo crescerem de vez os peitos.
Pensando assim, Jeremias ficou mais tranquilo. Mas que danados aqueles irmãos seus! Pois tava na cara que só podia ser por isso que estavam querendo encontrar a tal menina. Queriam era comer a bonitinha, era isso! E ele se preocupando à toa, com medo que os desmiolados fossem fazer coisa que desagradasse painho, algo inadmissível para ele. Para este filho mais velho, era Deus no céu e Dito Timbó na Terra. No fundo era até Dito Timbó no céu e Dito Timbó na Terra, isso sim. Palavra de painho não só era uma ordem, era algo de sagrado. Opinião de painho era verdade absoluta.
Contente com sua conclusão a respeito do interesse daqueles dois malandros pela mocinha, Jeremias resolveu não acompanhar mais os irmãos na busca. Ia ser perda de tempo demais. Primeiro um, depois o outro, iam se meter em algum quarto com a putinha e sabe-se lá quanto tempo ia levar cada um! Ele é que não ia ficar horas esperando feito besta. Quando chegaram no posto de gasolina, despediu-se dos irmãos e embarafustou-se no bar. Foi para os fundos, onde corria um carteado, dizque aposta alta, dizque coisa de cinco reais. Taí, Jeremias gostava de um carteado, quem sabe não era hoje o seu dia de sorte? Avisou os manos que ia ficar por ali no jogo e eles partiram em busca de informações sobre a garota.
Com certeza Jeremias ficaria muito decepcionado e, de novo, preocupado, se soubesse que na cabeça de seus irmãos não passara jamais a ideia de procurá-la como mulher da vida. Ambos tinham a genuína intenção de encontrar a criança e ajudá-la do jeito que fosse possível. Para Osmar, podia ser sua irmã e por isso ele devia ajudar. Para Bastião, mais sentimental ainda, era só uma criança de onze anos, abusada e machucada por um boçal, a quem eles, os quatro Timbó, já tinham aplicado o corretivo que a lei do sertão obrigava os parentes a aplicar: capar e eliminar o mequetrefe. Era só por causa dos maus tratos que Bastião achava que devia ajudá-la. Se fosse sua irmã, tanto melhor. Se não fosse, não era por isso que ia deixar de lhe estender a mão. Não é porque ele era bandido matador que não tinha dó dos outros.
Pois se algumas vezes chegava a sentir dó de sua futura vítima! Mais de uma vez enjeitara encomenda por causa disso, não estava convencido que o encomendado devia morrer. Certa feita, lá em Juazeiro, até tinha devolvido o adiantamento de um pagamento. O contratante ficou furioso e desacatou Bastião por causa disso na frente de um monte de gente. Bastião atirou o dinheiro nas fuças do homem e aplicou-lhe uns bons tabefes na cara. Depois, por segurança, esperou o disgramado atrás do muro do cemitério e o despachou ali mesmo, com um único disparo no peito. Aí aproveitou que o muro não era muito alto e jogou o corpo do homem para dentro: Vai, coisa ruim, agora tu já pode, agora tu é já um deles! Depois desse rápido episódio de menor importância, Bastião nunca mais teve dificuldades com seus não raros cancelamentos de contratos verbais.
Mas este caso da menina Ritinha era coisa muito séria. Bastião havia pensado muito nele, ouvira a opinião do pai e, pela primeira vez na vida, apanhou-se discordando de painho. Ficou muito chateado com isso e foi desabafar com mano Osmar. Para sua surpresa, também o irmão mais moço pensava como ele. Osmar era um porreta de um homem inteligente, sabia ler de carreirinha, ficara quatro anos inteiros na escola, todos no primeiro ano primário, que era “pra fazer ele bem feito”, como gostava de explicar. Era muita cultura, o orgulho da família Timbó, um verdadeiro doutor. Pois Osmar disse que o pai deles era um homem de uma certa idade, não que fosse velho, mas era de um outro tempo. As coisas agora eram diferentes, os homens tinham que seguir o seu próprio tempo.
Bastião ficou tremendamente impressionado com essa frase. Não se cansava de repeti-la mentalmente. Ele, Bastião, era um homem moderno, devia seguir o seu tempo, era isso. E, pelo que conseguira entender dessa coisa de seguir o seu tempo, isso podia ser pensar diferente de painho, que era de outro tempo.
E, desta vez, Bastião pensava diferente mesmo. Sua opinião era uma, a de painho, outra. Não achava certo abandonar uma criança de onze anos na rua, na prostituição, depois de ter passado por tudo o que passou. Não importava, para ele, que fosse sua irmã ou não. Importava que era uma grande injustiça o que tinha acontecido com ela. Eles já tinham justiçado o desgraçado do abusador da criança, o padrasto dela, o maldito João Boto, que agora estava na cadeia, sem os bagos e servindo de noivinha para seis presos famintos, até que chegasse o dia, já decretado pelos Timbó para dali a um mês, quando de repente os seis maridos ficariam todos viúvos, coitados.
Essa parte da missão estava cumprida e encerrada. Mas, para Bastião, o trabalho ainda não estava completo. Uma reparação total à menina não podia envolver só a punição do estuprador. Afinal isso fora feito muito mais como ritual de vingança da família ofendida. E, ainda mais fortemente, porque o ordinário havia ousado dizer que não temia um homem velho como Dito Timbó. Cavou sua sepultura com a língua, o desabusado!
Pois painho aceitara vir de Missão Velha para Barbalha mais para castigar a ousadia do desinfeliz do que para reparar a honra da família. Era evidente que ele não acreditava que Ritinha fosse mesmo sua filha. Assim sendo, que honra havia para lavar?
E se houvesse? Se Ritinha fosse mesmo irmã deles? Não era o caso de a família se unir, não só para capar e matar o descabaçador, mas para ajudar a irmãzinha desgraçada pelo maldito? Por que razão painho – e Jeremias também, outro jegue de teimoso – se recusavam a ajudar e até mesmo a conhecer a menina? Pois ele e Osmar haveriam de localizar a garota e falar com ela. Revelar-se-iam seus irmãos e lhe ofereceriam ajuda e proteção.
Dirigiram-se aos frentistas do posto para conseguir a informação que buscavam. Fizeram-se de interessados em fazer programa com prostitutas menores de idade. Osmar, muito esperto, foi logo conversando e brincando com os homens, dizendo que estava a perigo, no maior atraso, mas que só gostava de cabritinha bem novinha. Os frentistas não se fizeram de rogados:
– Pois olhem camaradas, vocês estão com sorte. Menina menor fazendo a vida é o que mais tem por aqui. Afinal, isto é ponto de pernoite de caminhoneiros. Elas preferem programa com caminhoneiros, com forasteiro de passagem, não gostam muito de fazer programa com homens daqui.
– Pois ocê diz qui nóis tá cum sorte porque tem muita minina di menor aqui, é isso? – Osmar perguntou:
– Não. A sorte de vocês é que tem uma quenguinha nova, uma que descabaçaram faz menos de um mês, é carnezinha nova, linda de se ver. Ela vem com outra, mais velha um pouquinho, uma indiazinha que é um tesão também. Não tarda as meninas começam a chegar. Umas cinco ou seis. Aí elas procuram pelos homens, que esperam por elas dentro dos caminhões.
– Oxe, mai nós num tem caminhão… – lamentou Bastião.
O frentista foi solidário:
– Não tem problema, eu coloco vocês num caminhão que está parado aqui, o motorista foi pra Juazeiro de ônibus, procurar peça para consertar o motor. A chave está aqui, ó, podem pegar. Vocês entram, e acendem a luz da cabine e o rádio quando as meninotas se aproximarem. Assim elas vêm que tem freguês no posto. Aqui é lugar pequeno, nem sempre pernoita motorista, quando tem cliente elas caem matando em cima. E olhe, lá vêm as duas primeiras. Corram pra dentro do caminhão, é o azul, placa de Colatina, Espírito Santo.
Segundos depois os dois irmãos já estavam dentro da cabine. Osmar, que tinha alguma noção de painel de automóvel, procurou ansioso pela luz da cabine e acabou encontrando o botão. Esqueceram de ligar o rádio, estavam tensos demais os dois.
Dois minutos depois, duas meninas muito novas se aproximaram. Bastião avaliou as idades. Uma aparentava uns 14 anos. A outra era muito mais nova: Ritinha?
Os dois homens ficaram estáticos, observando as meninas se aproximando do caminhão. A mais velha, mais experiente, escalou os degraus externos da porta do motorista e bateu no vidro fechado. Osmar abaixou-o a tempo de ouvir:
– Tio, me queira, por favor! Estou com fome. Vamos nós dois? Eu faço bem gostoso, você vai ver.
Osmar encarou a mocinha. Era de fato muito linda. O corpinho bem feito, bem fornida de carnes, peitos salientes e empinados. Era alta, delgada, elegante, uma carinha de indiazinha bonita, os cabelos negros bem compridos, os olhos esverdeados. Na hora Osmar esqueceu de seu propósito de encontrar a irmãzinha e passou a pensar com os bagos somente. Ficou cego de desejo:
– I donde é qui a gente vai? I quanto custa?
A mocinha saltou para o chão com um sorriso de felicidade e disse:
– Vem comigo, é aqui mesmo, tem os quartinhos lá dos fundos, atrás da borracharia. É ali que a gente se vira. O quarto custa dez reais, eu cobro só dez também. Se o moço não quiser o quarto, a gente faz aqui mesmo na cabine do caminhão. Mas aí uma tem que sair, juntas nós temos vergonha.
Osmar, já de membro duríssimo, pulou da cabine e se atracou com a garota, tratando de beijá-la e de passar as mãos por todo o corpo dela.
– Aqui não, seu moço. Vamos pro quarto, é logo ali atrás.
– Bastião, ocê espere por Rita, eu num posso agora!
Bastião ainda estava olhando admirado para Osmar que se afastava atracado com a indiazinha, quando ouviu as batidas no seu vidro. Abriu-o.
– Moço, me queira, por favor. Por favor… Estou com fome…
Bastião voltou-se para fora e viu aquele palminho de rosto angelical, sutil, delicado, com marcas evidentes de equimoses amarronzadas pelo tempo. Havia uma marca mais feia, como uma cicatriz, no pescoço. Uma criança assustada, uma criança com olhos súplices, uma criança perdida. Era Ritinha, não havia dúvida! Era loirinha e tinha os olhos muito claros. Sua irmã era uma galeguinha, quem diria!
Bastião terminou de abaixar o vidro e ficou mais um tempo a encarar a menina, que estacou sem saber o que fazer ou falar. Era evidente que não tinha experiência nenhuma de vida, que dirá de putaria…
– Ritinha? – perguntou ele, meio sem jeito.
– Sim. O senhor já soube de mim? Veio por minha causa também, como os outros?
– É, vim atrás di ocê. Qui bom qui le encontrei.
– Olhe, moço, eu também cobro só dez reais. E, como a minha colega já foi pro quarto com o seu amigo, a gente pode ficar aqui mesmo no caminhão e poupa o seu dinheiro.
Bastião resolveu esticar mais o assunto, queria saber até onde a menina iria:
– I ocê faiz o quê? – E viu a menina destravar a porta e entrar, sentando a seu lado no banco.
– Olhe, moço, não vou lhe mentir. Se o senhor veio atrás de mim, é porque já conhece a minha história. Então vai entender que eu não posso fazer tudo o que as outras fazem, não posso ainda, o senhor compreende?
– Num sei si intendi dereito. Num pode o quê?
– Moço, aquele maldito me machucou demais, é isso. Então eu ainda não posso…dar, entende? Tem que fazer só por fora e eu uso as mãos, pode ser?
– Ah, mai assim num tem graça – Bastião provocou – Cumo é qui ocê qué cobrá o mesmo qui sua amiga, qui faiz de um tudo cum certeza?
– Então o moço me dá menos. Mas, por favor, me queira assim mesmo. A gente tem passado muita fome, sabe? Tá muito difícil ter cliente no posto e eu não quero homem aqui da cidade, não.
– Ara! I por causa di quê?
O rostinho claro ficou mais vermelho:
– Ah, moço, eu tenho vergonha. É tudo gente conhecida da minha família, é muito pior para mim. E também tem esse problema meu, que eu estou muito machucada…lá. A médica do posto de saúde que me atendeu me avisou para não ter nada por muito tempo. Então está muito difícil começar nesta profissão, sabe? O pior é que os homens vêm aqui atrás de mim, vêm os da cidade, que estão sabendo do meu caso, acho isso um horror. Aí eu me escondo. Só quero ir com gente de fora, como o senhor. Mas aí, quando eu digo que não posso fazer, quase nenhum aceita. Querem de um tudo e eu não posso. E nem sei direito ainda…
–Pois fique sussegada qui eu vô le dá o dinheiro assim mesmo. Ocê disse qui tem passado fome, num disse?
– Muita, seu moço – os olhinhos se encheram de lágrimas pela primeira vez. Mas ela respirou fundo e conseguiu continuar:
– Se não fosse por essa minha colega que pode ganhar muito mais do que eu, acho que eu já tinha morrido. Me achou desmaiada na rua, me recolheu, tratou de mim, compra comida e remédio pra mim, é um anjo que Deus botou no caminho da minha desgraça. Me levou pra morar no quartinho que ela paga. E está me ensinando agora o que eu devo fazer com os homens. Ela entende de um tudo, está há quase três anos no ofício. Só que eu ainda não posso, é difícil.
– Pois toca a cumê, intão. Vamo lá no restaurante qui eu le pago o jantá.
– Não dá, moço – e os olhinhos encheram-se de lágrimas de novo – Ia ser tão bom, eu estou morrendo de fome. Mas eles não deixam a gente entrar lá e sentar para comer. A gente até pode comprar comida, mas tem que entrar pelos fundos, pela cozinha.
– Arre égua! Mai a troco di quê?
– Porque a gente é puta e a gerente nova é crente. Antes puta podia entrar, mas agora ela não deixa. Ela disse pro dono que era a gente ou ela. Ele preferiu a gerente, é claro. A casa é grande, é lanchonete e é restaurante também, e vêm muitos clientes da cidade. Aí eles não querem puta misturada com gente decente, é o que disseram para nós ainda ontem, mais uma vez.
Bastião sentiu-se enfurecer de vez com aquela barbaridade. Mas já não bastava tudo o que aquela criança tinha sofrido, ainda tinham que fazer mais essa maldade com ela? Estendeu o braço pela frente da menina, abriu a porta do lado do passageiro e falou, enérgico:
– Pois desça já, qui nóis vai cumê do bom i do milhó qui tivé nessa joça. Desça qui nóis vai intrá junto i ocê vai sentá do meu lado. I ai di quem si atreva a querê bulí cum ocê – E empurrou com cuidado Ritinha para fora da cabine.
A menina desceu assustada, tinha pavor de discussão e de briga e estava traumatizadíssima com a surra que levara de João Boto. Ficou com medo de entrar e ser expulsa e humilhada mais uma vez. E mais medo sentiu quando pensou que, no dia seguinte, aquele moço forte não estaria mais ali para lhe dar qualquer garantia. Mas Bastião já havia descido e, tomando-a pelo braço, carregou-a com firmeza até a entrada do restaurante.
Ritinha entrou tremendo, com os olhos baixos. Mas a fome era tão grande que ela faria qualquer coisa para poder botar algo na boca. A gerente estava à porta e fez um sinal para o segurança, que falou com voz autoritária:
– Quenga não entra!
– I ocê tá vendo sua mãe querendo intrá, seu cabra safado? Podi di sê qui a quenga di sua mãe num entre, mais minha irmãzinha aqui pode intrá, sim. Eu só quero vê quem é macho di querê impidí.
O segurança olhou para gerente desconcertado. Esta, por sua vez, também estava atônita. Mas falou logo, com arrogância:
– Que sua irmã, que nada! Deixe disso, homem. Isso é uma vagabundinha que apareceu por aqui, para fazer a vida no posto, uma sem-vergonha. Aqui ela não entra, isto é uma casa de respeito, não é lugar para uma nojenta que nem essa…
Paaaaaff!
Bastião mandou um tremendo tapa na cara da mulher, que rodopiou no ar com os pés fora do chão e foi se estatelar no sofá de espera, meio tonta, a cara ardendo, apavorada com a reação do homem.
O segurança fez menção de puxar a arma, mas Bastião imobilizou seu braço com um aperto que mais parecia uma tenaz de aço. Mantendo o braço do homem seguro, enquanto este gemia de dor, falou:
– Num tente fazê isso di novo, sinão le tomo a arma i ocê é um cabra morto. Pensando bem, é milhó eu ficá cum ela por enquanto. Na saída le adivolvo. Vá qui ocê num mi iscuta i resorve fazê bobage. Na certa ocê é pai di família, num quero le disgraçá.
O homem, assustadíssimo, fez com a cabeça que sim. Adiantou-se a abrir o coldre da arma, que era meio complicado, e deixou que bastião pegasse o revólver. Guardando-o na cintura, o pistoleiro deu dois passos adiante e, com um safanão, levantou a gerente do sofá onde ainda estava arriada e a empurrou para o salão.
– I ocê, sua merda, vai servi a gente di garçonete, intendeu? Vai trazê i leva os prato di Ritinha. I vai si adiscurpá, vai pidí perdão i vai falá muito manso cum ela. Sinão termino di le arrevirá os corno i dexo essa sua cara mais feia do qui já é. Vô tê o maior gosto di le fazê um monte de cicatriz na cara cum a pexera, num sabe? Vamo mulé, si avie, si mexa, leva já a gente pra milhó mesa qui tivé nesta joça aqui – E foi empurrando a gerente casa adentro, aos trambolhões.
Os fregueses, entre assustados e divertidos com a cena, ao verem aquela mulher antipática e arrogante ser humilhada, ficaram sem ação. Já os funcionários adoraram a situação, sentiram a alma lavada, havia justiça neste mundo, Senhor!
– Venha, minha irmã, vamo senta i cumê – falou Bastião, levando a menina pela mão até à mesa indicada pela gerente apavorada.
Ritinha estava radiante. Ia comer enfim! E aquele moço forte, que não tinha medo de nada, ainda por cima mentia que ela era irmã dele, só pra afrontar a gerente antipática.
Sentaram-se. Bastião fez um sinal com o dedo para que a gerente ficasse em pé junto à mesa. Um solícito garçom, todo sorridente, trouxe o cardápio, mas foi logo avisando:
– Seu Bastião, aqui está o menu, mas para o senhor eu recomendo o melhor da casa: nossa buchada de bode esta de tinir, uma maravilha. E olhe que está prontinha, quentinha, não carece de esperar por nada. Se o senhor me autoriza, trago pra vocês num minutinho.
– Tá, eu le agradeço. E le pergunto: me conhece di donde?
– Pois se eu tirei retrato com o senhor e seu irmão Jeremias, eu todo orgulhoso apertando a mão de seu pai Dito Timbó, lá em frente ao hospital do Dr. Epaminondas.
– Ah, intão é isso. Me adiscurpe si não me alembro, foi tanta gente i tantos dia…
Quando ouviram o garçom falar aquilo, os fregueses das mesas mais próximas começaram a levantar de seus lugares e a cercar a mesa de Ritinha e Bastião. E começaram os vários comentários:
– É mesmo, gente. Olhem só, é um dos homens que justiçaram João Boto.
– Sim, é ele mesmo. Um dos filhos de Dito Timbó. Um herói!
– Qui presepada que ocês aprontaro cum João Boto, vixe!
Aí foi a vez de atentarem em Ritinha:
– Então essa é a menina? Pobrezinha…
– Tão criancinha! Que desgraçado, ainda bem que cortaram os colhões dele.
– Oxe, mais num é? Tinha coisa mais merecida, mais bem feita?
– Pois tinha! Num levaro ele pra casá na delegacia com seis marido?
– Puxa, olhando essa criança de perto chega a doer na alma.
– E veja só: eu vi e ouvi essa nojenta aí destratando a coitadinha, chamando de puta e de tudo que é nome feio. Pois vou lhe dizer: enquanto essa coisa ruim for gerente desta casa, eu não boto mais meus pés aqui.
– Pois tem toda a razão, compadre. Aliás, acho que vou retirar o vale para nossos funcionários virem almoçar aqui, enquanto essa tipa emproada estiver empesteando este restaurante. Por causa dela é que esta coisa está entrando em decadência. Também, com um diabo desses dando as cartas!
Vinha entrando o dono do negócio. Alguém tinha corrido a chamá-lo, morava na casa em frente. O patrão ouviu tudo. Era um homem prático, não hesitou um segundo, não ia perder mais clientes por causa daquela coroa mal-amada, sempre em pé de guerra com cozinheiras, garçons, auxiliares, até com fregueses ela conseguia encrencar. Estava na hora, sabia reconhecer seu erro, fizera a escolha errada. Aproximou-se da mesa que virara o epicentro das atenções, reconheceu Ritinha, reconheceu Bastião, celebridade instantânea junto com seu pai e irmãos, não se falava de outra coisa na cidade. Dirigiu-se à gerente com voz áspera:
– Dona Matilde, eu ouvi tudo o que os fregueses estavam falando. Vou lhe dizer uma coisa curta e grossa. Uma vez a senhora me falou assim: “ou elas ou eu”. Pois na hora eu fui um besta, fiquei com a senhora. Pois agora estou corrigindo o meu erro. Volto a ficar com as moças, como sempre foi antes nesta casa. Dona Matilde, vá catar suas coisas e ponha-se daqui pra fora, estou lhe despedindo por justa causa!
A gerente engoliu o choro, era orgulhosa demais para dar esse gosto àquela cambada de idiotas, patrão, funcionários, fregueses, uns imbecis de marca maior. Mas, enquanto juntava seus trastes, compreendeu o perigo que corria, agora que estava sabendo que aquele homem era filho do terrível Dito Timbó. Precisava limpar a barra com ele. Ao mesmo tempo caiu a outra ficha: ora, se a putinha era irmã daquele monstro… então ela também era filha do maior pistoleiro do Nordeste! E ela que tinha destratado a menina não lembrava quantas vezes! Céus, estava encalacrada, corria risco de vida, qualquer um daqueles bandidos desalmados podia acabar com ela em dois tempos!
Perdeu o resto da pose. Quando passou com suas coisas em direção à saída, caiu de joelhos em frente a Ritinha. Implorou perdão. Disse que aquilo não era coisa sua, era obra de um demônio que às vezes a “atentava”, que iria ao pastor pedir ajuda, caridade, exorcismo.
Ritinha nem respondeu, estava em estado de choque. Então era verdade que aquele rapaz que a defendera era mesmo seu irmão?! Ela tinha achado que ele falara aquilo só para assustar a gerente, na hora da entrada. Mas ele era filho de Dito Timbó. E Dito Timbó era o pai dela também, sua mãe sempre o dissera, desde que ela, pequeninha, exigia que ela lhe explicasse por que seu pai nunca quisera saber dela, porque a havia abandonado e à mãe àquela miséria em que viviam. Com o tempo transformou essa carência em consciência da rejeição e, depois, em ódio àquele homem cruel e desalmado.
Veio a buchada de bode, os dois irmãos comeram encabulados. A fome de Bastião era enorme, a de Ritinha maior ainda, era fome de ontem. Comeram em silêncio, Bastião como um selvagem, Ritinha, apesar de faminta, com extrema delicadeza. Encabulados também porque todo mundo ao redor ainda os observava, haviam formado uma roda, em pé, ao redor da mesa deles.
Mas Bastião, comendo com os talheres e com as mãos, logo ignorou aquele povo todo, ocupado com os enormes nacos que enfiava na boca. Ritinha, tão logo sentiu sossegar o buraco que tinha no estômago, foi ficando mais e mais encabulada. Aquele povo todo ali do lugar a olhar para ela, sabendo que agora ela era uma quenga, uma putinha qualquer, já não conseguia mais engolir nada, foi se encolhendo mais e mais na cadeira.
Iracema! Onde estaria Iracema? Como precisava agora de sua presença forte, de sua mão amiga. Se Iracema estivesse ali, então não se importaria que a olhassem como uma qualquer, não se importaria se a chamassem de quenga. Mas Iracema estava lá no quartinho da borracharia, tratando de satisfazer o outro homem. Tinha que dar duro, fazer de um tudo para poder receber aqueles míseros dez reais sem reclamação ou pedido de desconto. Ai, Iracema, pelo amor de Deus, termina logo, querida, vem me socorrer aqui! Mas Iracema não aparecia.
Foi Bastião quem pôs fim ao incômodo silêncio, depois de se fartar de buchada:
– Ocê intendeu qui nóis dois pode sê irmão?
– Sim, se seu pai é Dito Timbó, o matador.
– Pois num é otro sinão ele, le digo com muito orgulho. E o seu, quem é?
– Desde pequenininha minha mãe me disse sempre que meu pai é Dito Timbó.
– Desde piquininha, é? Ocê tem certeza?
– Tenho sim. Desde que eu consigo me lembrar das coisas, ela sempre me garantiu que meu pai era ele. Tanto era que, quando aconteceu essa desgraça comigo, ela mandou a tal carta foi para ele.
– Ara, pois intão há di sê mesmo. Ocê, Ritinha, é minha irmãzinha de verdade. Fico muito filiz!
– E o moço então é meu irmão e se chama Bastião…
– Pra le servi e le protegê, minha irmãzinha. Para le defendê sempre!
– Mas o moço.. Mas o meu..
– Seu irmão, Ritinha. Seu irmão Bastião.
– Mas o meu irmão Bastião sabe agora que eu sou uma quenga, não sabe?
– Num sei, não, porque num le acho quenga. Ocê é por demais criança pra isso. I sua disgracera aconteceu faiz menos de um meis, num deu tempo di si aprostituí.
– Mas você viu o que eu me dispus a fazer com você no caminhão, usando as mãos. Olhe, eu não sei mentir, tenho que lhe dizer que já estive com um homem antes, num caminhão. Só não se deu de um tudo porque eu não podia, não posso até hoje, como lhe expliquei. Então eu já sou quenga!
– Mai isso num mi importa, maninha! Pode di sê qui painho i mano Jeremias ache ruim. Pra mim i pra mano Osmar – aquele qui foi cum sua amiga – isso num tem importança. Nóis dois acha qui ocê é só uma criança qui sofreu dimais. Nóis dois qué reconhecê ocê como nossa irmã i fazê di um tudo pra le ajudá, num sabe?
Novo choque para Ritinha! Então o moço com Iracema era seu irmão também: Osmar! E havia um terceiro, por nome Jeremias…
Nesse exato momento Gabi (o nome de guerra de Iracema) e Osmar entraram no restaurante e encontraram a mesa de Bastião. A moça falou quase gritando:
– Vixe, Ritinha, esses moços são seus irmãos! São filhos de Dito Timbó, seu pai!
– É verdade, moça – apressou-se a garantir Bastião, todo entusiasmado – Ela é mesmo nossa irmãzinha.
Osmar aproximou-se mais e postou-se em frente a Ritinha que, sem saber o que fazer, acabou levantando da cadeira e sustentou o olhar que a examinava de alto a baixo.
– Pois veja ocê, mano véio, si num é a cara di painho mesmo! A mesma quexada, tá vendo só? I os óio, intão? Ói só cumo é qui ela infrenta, tá si vendo qui tem a corage dos Timbó. Venha di lá um abraço, maninha!
E Osmar abraçou a menina com efusão e contentamento. Estava mesmo alegre por ter encontrado uma irmã criança.
– Seu… Seu Osmar… Eu não…
– Seu Osmar, maninha?! Mai qui cerimônia é essa? Si avexe não, mi trate di ocê, oras. Vamo lá, abrace di verdade seu mano véio aqui.
Desta vez, embora ainda constrangida, Ritinha correspondeu ao abraço de Osmar. Diferente de Bastião, que era sério, calado, Osmar era alegre, falastrão, divertido. Estava com vinte e quatro anos de idade, quatro a menos que Bastião e doze a menos que Jeremias.
– Osmar… Você é meu irmão Osmar… Que estranho tudo isso. Faz pouco dias que eu perdi minha família, minha mãe, uma irmã, dois irmãos. Vim parar na rua. Pois foi aí que encontrei minha irmã do coração, Gabi. E agora encontro mais dois irmãos meus. Parece que o destino resolveu brincar de me tirar e me dar irmãs e irmãos.
– Você merece que tudo de bom lhe aconteça, meu amor – sussurrou Gabi, macia, amorosa, pegando na sua a mão de Ritinha – Já sofreu demais para alguém de sua idade.
– A moça tem razão, nóis também pensa assim – completou Bastião – Por isso é qui nóis qué le leva deste lugar, pra mode ocê cunhecê painho i mano Jeremias.
Todos perceberam na hora que Ritinha empalideceu e teve uma expressão de pavor. Conhecer Dito Timbó?! Não, aquilo era a última coisa que ela podia querer! Iracema percebeu o que se passava e correu a enlaçar sua menina pelos ombros. Delicadamente, mas com firmeza, fez Ritinha sentar de novo. E sentou na cadeira ao lado. Ritinha tremia.
Os irmãos Timbó pegaram outras duas cadeiras e juntaram-se a elas na mesa. Osmar falou então, já abrindo sua sonora gargalhada:
– Ó xente, intão ocês tava si acabano na buchada di bode i nós dois aqui, minina Gabi i eu, na maior fome. Tá certo isso? Ara, intão vamo dexá minina Gabi sem sê servida? Qui farta di educação!
O mesmo garçom simpático e solícito fez um sinal para a cozinha e, um minuto depois, chegava com um reforço de buchada, pratos e talheres. Gabi, que passava fome há dois dias, atacou a comida com sofreguidão, feliz da vida por que ia comer sem precisar gastar seus dez reais. Osmar se jogou à buchada com a mesma grossura de Bastião há pouco, Este não se fez de rogado e encheu o prato fundo mais uma vez. Só Ritinha, satisfeita com o que havia beliscado e sob o impacto de tantas emoções, permaneceu apenas olhando. Tensa. Não, ela não queria ver Dito Timbó. Nunca na vida!
– Maninha num cômi? Num apreceia uma buchada?
– Adoro, Osmar. Mas já comi o bastante, obrigada.
– Maninha é educada qui dá gosto di vê, mano Osmar. É uma princesa.
– I é uma belezura, mano Bastião. Vamo tê muito trabalho pra modi protegê ela quando ficá mais mocinha.
– Me proteger, mano Osmar? Mas então você não vê que eu sou, quer dizer, que eu já sou uma… uma… uma quenga?
– Mai isso ocê num é, não! Nóis dois acha qui não. I o qui importa é o qui nóis acha, mano Osmar i eu!
E exaltando-se, falando alto, encarando todos os que estavam ao redor no restaurante, Bastião levantou da cadeira e disse:
– Tem arguém aqui qui ache qui nossa irmã é quenga? Pois si tivé, home ou mulé, qui se aprochegue i diga na minha cara.
Bastou para que Osmar se erguesse de um salto, derrubando a cadeira e assustando meio mundo:
– I na minha também! – Então lembrou-se de Gabi, que a tudo assistia incrédula, de olhos arregalados – Vô perguntá melhormente: Tem arguém aqui qui tá vendo arguma quenga cum nóis?
O não foi geral, todo mundo tratou de sacudir a cabeça com veemência:
– Não senhor, só duas moças de família. Quenga não tem, não.
– Quenga? Mai num si vê ninhuma, valha-me Deus Nosso Senhor.
– Bom! – sentenciou Bastião – Assim nóis num pricisa castigá ninguém. Mai avisa o povo todo desta cidade: Si arguém mangá cum nossa irmãzinha o cum a amiga dela aqui, nóis aprica na hora o corretivo.
– Os homi a gente capa e lava pra sê noivinha também – comentou Osmar divertido, fazendo os homens presentes sentirem uma crispação nos bagos, o terror estampado no olhos.
– I as mulé a gente corta a língua, qui é pra modi num falá mais mal da vida dos otro. Castigo porreta, porque mulé sem falá num veve – E Bastião caiu na gargalhada, vendo algumas mulheres levarem a mão à boca.
Gabi/Iracema comentou em voz baixa:
– Vocês são loucos? Como é que essa gente não vai ver uma quenga aqui? E eu sou o quê? A madre superiora, Osmar?
– Eles é qui são loco si acha qui pode disfeitiá os Timbó! (pág. 122)