Rosário de Capiá (Onévio Zabot)

ROSÁRIO DE CAPIÁ

 

No vulgo, caipira; no culto, popular. Nada disso, não. Talento e criatividade não necessariamente provêm de  púlpitos. A si só se bastam; afloram. Percebe-se isso lendo: “Prefácio às Contas de Capiá de Nhô Bento, escrito por ninguém menos do que Monteiro Lobato.

Cícero Marques, amigo de Lobato, apresenta Nhô Bento e Pagano, parceiros de roça, e  pede para declamar poemas. Lobato lá com seus botões cisma… “Esses tais recitativos de encomenda  são em geral uma estopa que a gente tem que engolir de cara amável, com palminha no fim e pedidos hipócritas de “Recite outra…”.

Após ouvi-los, muda de ideia. Ambos geniais. Linguagem caipira, linguagem  desdenhada nos meios acadêmicos, mas  autêntica. Sincera. De raiz. Sotaque de roça, mas de conteúdo  universal, escreve Lobato.

Convidado para prefaciar o livro de Nhô Bento, Lobato aflora  brasilidades. Deslumbrado diante do que  ouviu,  deduz:

–  “Temos duas civilizações, ou melhor, duas culturas: a importada, dos que vivem nas cidades,  sabem ler e escrever  e até livros escrevem! E a cultura local , filha da terra como um cogumelo é filho dum pau podre, desenvolvida pelos homens do mato – caboclo, o caipira, o Jeca, em suma”.

O Jeca nunca leu nada; atento, no entanto, ligou-se umbilicalmente ao palpitar dos dias. A voz da natureza entranhada em sua alma, se expressa no gorjear das aves, no rugir dos animais silvestres, nas águas dançantes e na dança dos ventos dobrando ramadas. De raiz  indígena, é certo.

Lobato constata  linguajar típico. Singularidades.  Por exemplo, a troca do “b” pelo “v”: cambersa”, “berso”, “cuverta”…O “lh” substituído pelo “i”: “abéia”, “paía”, “máia” (malha)…O “ou” reduzido a “o”: “fumô”, “botô”, “junto”… quantos aspectos”. Ousa: propõe fazer uma gramática do universo Jeca.    Não fosse o culto Lobato a propô-la, e,  tal iniciativa certamente seria defenestrada.

Vislumbra proximidades com o inglês, segunda língua de Lobato. Destaca: “O Jeca forma seus plurais com a mesma inteligência e economia do inglês, diz, por exemplo, ”as casa”, “os home”, “as muié” em vez de dizer redundamente como no português “as casas”, “os homens”, “as mulheres”. O inglês diz the houses ( as casas), the men ( os homens), the women (as mulheres), a mesma coisa que o Jeca, só que  invertido”.

Conclui:  o português no Brasil está sofrendo duas variações:

–  “Uma lenta, gente que sabe ler e escrever, e outra rápida da gente da roça segregada do urbanismo, do livro,  do jornal e do rádio, o abençoado Jeca  que tem a sorte de não ler os jornais  do governo nem os da oposição e de não ouvir a voz do Brasil”.

Enxerga no poema Rosário de Capiá uma obra-prima. Capiá é um capim alto que produz  sementes azuladas, próprias para confeccionar rosários.

Então, ao poema:

–  “Quem tudo sabê/acaba não sei pro quê,/maluco que inté dá medo/fazendo as contas nos dedos/sem nunca podê acertá/. É só a gente passá/um fio de linha no meio, /pra modê enfiá as continhas/com jeito, pra não errá…/quando o fio tiver bem cheio,/co’as conta tudo juntinha,/também tá prontinho e feito/ um Rosarinho perfeito/de contas de capiá”. Ia contando,/as contas de capiá/azurzinha, bonitinha,/paradinha na varinha, tô vendo o corgo passa”. E segue(…). “No fim quando enfiei as conta que fartava/pra sê a úrtima conta enfiada no fio/meu coração tremendo se ria e chorava/ e se assombrava inté com tudo isso que viu…/Meu pensamento  então foi longe e me largô/. Levo os fio de linha e as conta que enfiava,/foi no céu campeá a minha mãe donde tava/deu de presente a ela o rosário e vortô”.

E vai às flores:

– “E as frô despencando,/vão se desbuiando/no ribeirãozinho,/ os gaio da arve largando sozinho/que nem fio ingrato/que esquece do trato/que teve do pai… Ponhando sentido nas frô quando cai,/quarquê comparança/se fais Co’a esperança/que a gente possuiu/ e se consumiu/. E quando o corguinho decerto cansado,/cochila, parado,/as frô que caíram,/que também arô,/mas mudo de cô/de tanto rola,/dá pena se oiá!/ Tá tudo juntinha,/tudo agarradinha,/que nem se conhece…/Vendo elas parece/que a escuma verméia/que deixa elas feia/é que nem as cova mostrando os ossinho/de um corpo de anjinho/. Tá tudo quietinho/inté os passarinho/cumbersa baixinho”.

Lobato arremata:

–  “Amigo, leia Nhô Bento e aprenda; fique sabendo que a poesia  verdadeira é isso. O resto que anda por aí é  “intelectualismo versificado” lindo as vezes, mas com muita pouca poesia dentro – e poesia local , original inédita, nenhuma – salvo nos livros de Catulo. Leia o Rosario de Capiá e se quer tomar um banho de imersão em poesia pura e travar relações com a língua do Jeca – muito mais interessante e inteligente que essa nossa língua de letrudos”.

Monteiro Lobato, uma vez mais, surpreende.  E com  Rosário de Capiá,  resgata o Brasil caipira. Uma surpresa e tanto, e das boas.

 

Joinville,  2 de dezembro de 2025

Onévio Zabot

Engenheiro Agrônomo

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