Sertão Jandaia (David)
SERTÃO JANDAIA
David Gonçalves
O cincerro tilintou – tlim-tlim-tlimmmm – na tarde morna. Moleques saíram à porta das casas e as mocinhas na janela. A molecadinha se espicaçou nas ruas tortuosas renteando as cercas. A vila, boca de sertão, se acordou com a chegada inesperada do tropeiro e seus animais. Sob o chapelão de palha, os olhinhos azuis espiavam o sol poente, as grandes árvores jogando suas sombras sobre a relva. Procurava pouso. Quem sabe, naquela vila, conseguiria vender algumas mulas. Uma mulher mestiça, na janela, mostrou a direção da pousada numa esticada de beiços. Cansados, a poeira na pelagem, os animais seguiram a madrinha, uma besta ruana experiente, a trote frouxo.
Angico Reis, o tropeiro, puxava a mula ruana com rédeas desafogadas, de vez em quando limpava a testa enrugada com os dorsos das mãos calejadas. Saíra de Apucarana de madrugada e viajara, pelo menos, entre trilhas e picadas, umas quatro léguas sob sol carrasco. Talvez, naquela vila – casas de tábuas e de palmitos, cobertas com tabuinhas e sapé –, conseguiria bons negócios. Dali para diante, o vale do Ivaí, picadão mata adentro. Corrutela, vilazinha tamanho de unha. Em todas as casas, proliferavam chiqueiros de porcos, galinhas soltas no meio da ruela, cachorros vagabundeando. Sim, o nome de ave causava espanto: Jandaia. E havia muito dessa ave. Nos fins de tarde, os bandos barulhentos rodopiavam no céu esbraseado como se desenhassem voos circulares, repetitivos.
– Ôh de casa!
Um velhinho saiu ao terreiro de chão vermelho.
– O rancho do pouso…
– Tropeirage é lá pra riba, subindo sempre!
Tlim-tlim-tlimmm – o cincerro; plác-plóc-plác-plóc – os cascos da tropa em fila. Mais adiante, o racho de pau a pique; ao redor, a floresta já cambalida pelo avanço dos machados afiados e, nas clareiras, cafezais brilhavam ao sol da tarde. No rancho, dois peões de estrada já se preparavam para a noite. Num fogão de pedras improvisado, a panela de ferro deixava escapar o vapor que se misturava com a fumaça escura da lenha sendo queimada. Um ainda era moço, rapazola ruivo, nem barba tinha, pouco sabia da vida; o outro, um preto velho, barba grande e cabelos sarapintados de branco. Havia lugar para mais um?
– Oxente! – respondeu o preto velho, mirando a tropa. – Hai, sim. Cristão nenhum hai-de ficá no relento neste mês de agosto! Di noite, a friage bate forte…
A tarde morna, aos poucos, dava lugar a uma brisa fria; bandos de pássaros procuravam copadas de árvores densas para o pouso, e as jandaias desistiam dos voos circulares e repetitivos e se acomodavam quietas, o papo cheio de sementes de frutas e de capim. E o friozinho já enregelava os braços e as orelhas. O rapazola ruivo sobraçava uma pequena viola ensebada, afinando. O preto velho tossia seguidamente, escarrando.
– Esse frio! – gemia, colocando mais lenha no fogão. – Dói no osso, home!
Angico Reis estendeu um guampo cheio de cachaça. O velho não fez cerimônia. Bebeu uma golada.
– Cante arguma moda, Angelinho! Não fique empacadu aí, feito burro marcriado, arranhano as corda dessa maldita!
Então, o rapazola repicou a viola e soltou a voz roufenha:
Eu sempre zombei da morte
Eu sô um cabra bem forte
Eu fui nascido no Norte
O mundo que me criô
Meu facão é aço puro
Eu jogo ele seguro
Eu brigo até no escuro
Não erro os taio que eu dô
Meu facão paguei bem caro
Eu comprei em Santo Amaro
Na zona dos brigadô.
A lua subia sobre as copadas, num clarão de gema de ovo, se desprendendo aos poucos. A mulada, depois de bom trato, dormitava deitada, sob o curral coberto de sapé logo ao lado.
– Naquele tempu, eu tinha vinte anu – o preto velho começou a contar, interrompendo a cantoria do rapazola ruivo. – Esse sertão, aqui, era discunhecidu inda. Foi lá nu chapadão paulistanu, com pai, mãi e ermão…
Vai que a vida dá voltas. O pai fora assassinado numa festa de igreja, numa tarde que ameaçava temporal. Os capangas do Lópão, gente graúda, chefe político. Trouxeram o pai numa rede nos ombros dos catadores de café. Bem morto, depositaram no alpendre como saco de batatas, o sangue ainda quente manchando o assoalho de tábuas largas. Aí, o preto velho, que era moço forte, tomou resolução. Sangue se paga com sangue; dente por dente; olho por olho. Disse aos irmãos mais velhos: “Eu risorvu!” O pingo no i. Era janeiro, verão brabo, as chuvas caíam em trombas d´água, trovoada grossa com relâmpagos traiçoeiros. Vestiu a capa boiadeira, picuá cheio de rapadura, farinha, feijão e cachaça, encilhou a montaria e se jogou na chuva, no meio do barro mole. Que não esperassem por ele, estava caindo no mundo. O Lópão e seus capangas tinham que pagar caro pelo crime. Estavam com os dias contados. Naquelas estradas alagadas, o pai morto estendido no assoalho do alpendre, rodopiando na cabeça. Noite braba, somente os sapos coaxando nos brejais e as corujas agourentas nos ocos de pau e de pedra. Seguia resoluto, alumiado por relâmpagos que refletiam sua presença nas poças d´água e guiavam o seu caminho da vingança.
Passava da meia-noite quando troteou na fazenda de Lópão.
– Ôh de casa! – bateu à porta, depois de ter aberto a porteira da sede. A chuva não dava tréguas. Dois cachorrões no alpendre nem ladraram, quietos, friorentos, resmungando com as goteiras que salpicavam o assoalho de tábuas largas. Que diabos o possuíam naquele momento? Conforme os peões iam acordando, ele ia matando. Do revólver, só se via uma língua de fogo se misturando com os clarões dos relâmpagos. Estava possuído, comandado por forças estranhas. Por último, o Lópão, que arregalou uns olhões de alma penada que até hoje não se apagaram da memória.
– Nun mi mati, não, nãããããoooo! – um pedido inútil, simplório. Um homem fora de si não ouve. Sim, a vingança: não tem ouvidos e nem olhos. O Lópão caiu sem vida, o balaço no meio da testa. Mais capangas chegavam, desorientados, atirando sem rumo. Ele se atirou na noite, no meio do temporal, espantado com a façanha. Na subida do espigão, começou a tremer, um frio doentio nas costas. O cavalo estava bufando de cansaço, quase já não troteava, as patas se arrastando, até parecia que carregava alguém na garupa. Quando olhou para trás, na garupa, lá estava o Lópão, aqueles olhões espantados clareando como relâmpago na escuridão. Aqueles olhões nunca mais o deixariam em paz…
– Caí nu mundu! Sem distinu certu feitu arma penada… Du ladu qui u ventu vai, sô! Aqueles zoiãos arregaladu du Lópão mi persiguinu… Até hoji sintu u mardito friu nas costa, enregeleno. Já mi benzi cum padri i curandêru, em missa di capuchinhus i até im dispachu… Mai os zoiãos du finadu num mi larga… Êta fiu brabu!
O preto velho se enrolou num cobertor e parou de falar de repente, emudecido. A lua branca, bola fantasmagórica, flutuava perto das Três Marias, renteando. O rapazola ruivo, sem saber o que dizer, ponteou a viola novamente e cantou com a voz roufenha:
Estou correndo perigo
Tenho muitos inimigo
Prá morte eu poco ligo
Se ela vié me buscá
Eu sô um cabra largado
De vivê já tô cansado
Tenho dinheiro guardado
Sem sabê prá quem dechá
De vivê não faço empenho
Vô dechá tudo que tenho
Praquele que me matá.
O frio enregelava. O fogo dormitava sob as cinzas. O silêncio da noite pairava sobre o vilarejo, plantações e floresta. Todos dormiam. Ninguém escutava o sereno caindo, calidamente. O preto velho sonhava, com certeza, com os olhões de Lópão, Angico Reis com alguma negociata e o rapaz ruivo com alguma paixão encravada por esses grotões. Sertão Jandaia…