Sessão de saudade
Faltava apenas Bento Queiroz para que a tertúlia estivesse plena ou, como gostava de dizer o presidente Tivergílio, a alcateia inteira presente. Bento Queiroz chegou ornamentado com seu reluzente colar acadêmico a ofuscar as listras em vermelho e laranja da gravata há pouco adquirida. O terno de bom corte dava-lhe a robustez que não possuía, mas não escondia a pequena corcova que saltava-lhe às costas. Os sapatos de cromo alemão sustentavam seus passos lentos e presunçosos. Caminhou pelo corredor central do salão em desfile. Escolheu assento e repousou seu velho corpo cujos anos pesavam exatamente o dobro de seus raquíticos 48 quilos. Por desrespeito ou cansaço, não se levantou quando ofereceram-lhe as mãos em cumprimento os imortais que se acercaram. Também não viu ao fundo os familiares de Veridiana Castanho a quem se oferecia aquela sessão, organizada às pressas para que o regimento da Academia Tapeiense de Letras se cumprisse. A imortal da pequena cidade a Leste de Santa Catarina descumpriu o título, morreu minutos depois de colocar ponto final à sua mais laboriosa obra. Cadeira vagou e, por força do estatuto, o encontro solene em homenagem à falecida aconteceu 27 dias após a morte. O edital para preenchimento da vaga já estava pronto e seria lançado em dia útil próximo.
Piano e harpa soltaram os primeiros acordes e o burburinho da plateia se aquietou. De uma das janelas abertas, o vento deu o ar da graça, fazendo balançar o lustre de cristais acima dos convivas, e seu tilintar uniu-se à música como percussão suave. Nem todos os ouvidos puderam discernir acaso de arranjo, e tudo parecia mágica. Ao final da peça, Otônio Querubim, advogado em tempo integral e poeta nos dias de desencanto amoroso, leu trecho de poema alheio, cujos versos serviriam à homenageada tanto quanto ao mais ignaro transeunte das calçadas de Tapeia. Foi, de qualquer forma, comovente, e promoveu o saque de lenços para que as senhoras presentes enxugassem suas incontidas lágrimas.
Discursou o presidente a listar as qualidades que possuía, ou não, Veridiana Castanho, mas que era de bom tom dizer. O mais próximo dos familiares foi chamado para receber flores e uma placa sob o som de piano, harpa e aplauso. Enquanto o rapaz se encaminhava, uma senhora tossiu, um moço pigarreou, Bento suspirou.
Não que fosse dele emocionar-se em cerimônias, mas é que viu no moço que representava a família da defunta profunda semelhança com seu filho Eduardo, há muito distante por conta de seriíssima discussão entre ambos e da qual nenhum dos dois dava braço a torcer. A música eriçou a pele enrugada de seus braços, conteve lágrima e saudade. Sublimou, ergueu cenho e distraiu-se com o lustre, agora parado, sem vento que lhe desse vida.
Antes que a sessão corresse para o fim, um vídeo projetado em uma das paredes do velho clube mostrou trechos de entrevistas da imortal. Dizia a senhora em uma de suas conversas com a imprensa que sua literatura tinha função social mais que qualquer coisa. Bento soltou um “Ora!” ouvido por todo o salão. Sofreu olhares, ignorou. Cutucou Feliciano Fausto, seu amigo de longa data, e sussurrou em seu ouvido:
– Como Veridiana Castanho pode dar uma entrevista dessas, literatura não é isso, se queria fazer trabalho social que fosse trabalhar em uma Organização Não Governamental.
Também em sussurro, Feliciano informou que Veridiana presidia uma ONG e tinha, portanto, pertinência em seu discurso. Ao que Bento, preso às suas convicções e alheio à cerimônia, esqueceu de sussurrar:
– Mas literatura não é obra de caridade!
Sofreu novos olhares, aquietou-se e foi, aos poucos, abandonando discurso e razão para deleitar-se com o que viria a seguir. Tão logo terminou a projeção do vídeo, irromperam aplausos entusiasmados de familiares, aplausos protocolares de membros da Academia e o aplauso chocho dele. Otônio tomou a palavra e convidou o filho da homenageada para proferir discurso.
– Quero convidar o filho de nossa ilustre e saudosa acadêmica, Veridiana Castanho, para usar a palavra. Por favor, Eduardo.
Não era possível. O jovem que fizera tanto Bento lembrar de seu filho distante também se chamava Eduardo. Não conseguiu conter a lágrima que contornou as imperfeições de seu velho rosto e depositou-se sobre o colar acadêmico. O Eduardo que não era seu filho lia um discurso afetuoso e repleto de saudades de Veridiana Castanho. O velho tomou para si aquelas palavras e o filho da escritora, em insano devaneio. À medida que a voz do rapaz ecoava, mais lágrimas produzia Bento, até ser despertado pelos aplausos ao final do discurso. Olhou para a medalha de seu colar, passou os dedos trêmulos e recolheu o líquido cristalino de suas lágrimas. Piano e harpa encerraram a celebração, o vento balançou os cristais do lustre e tudo, naquela noite, tornou-se mágico e inesquecível.
Antes de sair, acenou com a cabeça aos presentes que por ele passavam, parou apenas diante de Eduardo para apertar-lhe a mão e dizer nada. Era um dos poucos momentos na vida de Bento Queiroz em que lhe fugiam as palavras. Abaixou a cabeça e soltou a mão do rapaz.
Abriu a porta delicadamente, entrou sem ruído, e depositou corpo e cansaço sobre a poltrona. Quincas Borba aproximou-se silente, mas com o rabo aos gritos de tanta alegria pela chegada do dono. Recebeu breve carinho na cabeça e aquietou-se sobre o tapete. Sua cegueira parece ter aprimorado os outros sentidos e Quincas entendia toda movimentação de Bento, inclusive as da alma. Na mesa de canto, o telefone refletia a luz que invadia o cômodo pela fresta da cortina.
Ao lado, uma caderneta continha velhos números de telefone de amigos distantes ou mortos. Vencer poucos metros nunca necessitou de tanta coragem como aquela noite. Prostrado entre medo e coragem, Bento não se moveu, sequer Quincas. Passava de uma da manhã, quando o imortal apoiou o braço e ergueu-se. O cachorro virou-se em direção ao quarto, aguardando o dono, mas o velho deu dois passos para o outro lado, tirou o telefone do gancho e apertou os oito números que jamais esquecera. No sétimo toque sem resposta levou o aparelho à mesa, mas antes de depositá-lo sobre a base, voltou-o ao ouvido. Alguém atendeu:
– Alô!
– Alô… Filho? – sussurrou, depois de alguns segundos. Seguiu-se breve e interminável silêncio.
– O senhor quer falar com quem?
O imortal reconheceu a voz de Flor, como era chamado Floriano. Respirou fundo, engoliu orgulho e, sem firmeza na voz, sussurrou mais uma vez:
– Eduardo.
– Amor, acho que é seu pai.
Ouviu passos apressados e um objeto de vidro cair. Ouviu um novo estrondo e não ouviu mais nada além do silêncio mudo do telefone desligado.
Como os cães são perspicazes quando se trata da emoção humana! Quincas gemia, compartilhando a dor e a tristeza de seu dono. Bento, bem trajado, de colar acadêmico no peito, era sumo da tristeza naquela noite quente. Baixou os olhos e se deu conta de Quincas. O cachorro sentiu o dono sorrir, ainda que o velho não tenha movido um único músculo da face. Bento caminhou em direção ao banheiro despindo-se e deixando as peças caírem no chão, Quincas vinha atrás pensando ser brincadeira o que acontecia e latiu agitado, até o velho fechar a porta atrás de si. Bento abriu a ducha e teve 23 minutos para digerir a profusão de sentimentos que vivera nas últimas horas. Dormiu enrolado na toalha, com Quincas ao seu lado.
Acordou por volta das seis, tomou seus três comprimidos matinais, um para o coração, outro para a pressão e o terceiro para que os dois anteriores não destruíssem seu estômago. Ainda não eram sete horas quando ligou para Feliciano Fausto.
– Eu preciso falar com você.
– Bento, ainda é madrugada.
– São sete!
– Sim, eu sei.
– É muito sério, Feliciano. Muito sério.
– Faleceu outro imortal?
– Ainda não.
– Ainda não?
– Precisamos nos encontrar.
– Fala logo, homem. Não me faça sair da cama para ouvir algo que você pode contar por telefone.
– Não posso.
Feliciano respirou longamente. De olhos fechados respondeu:
– Está bem. Dê-me duas horas.
– Uma.
A Praça Théophile Gautier era menor que a Praça Central; contudo, por estar próxima a restaurantes e bares, tinha maior movimento, o que incluía motores envenenados que modificavam seu ar bucólico. Bento sentou-se em um dos bancos voltados ao coreto, que agora servia de playground para as crianças, relembrou os bons momentos que viveu ao lado de
Giselle, sua primeira namorada, quando encontravam-se para ouvir composições românticas muito bem executadas pela Banda do Paço. Um dia, por descuido ou destino, a moça apaixonou-se por um agricultor, que viera a descobrir mais tarde não ser simples trabalhador rural, mas latifundiário muito bem sucedido. O mais triste, contudo, não foi a perda de Giselle para o tal, mas a perda da moça para a morte. Giselle foi encontrada, meses depois, morta em meio ao arrozal. Com ela morreu sua história, inclusive a de sua morte.
Quando voltou a atenção para a praça, o coreto não era palco de brincadeiras infantis, mas ribalta para dois jovens que dançavam cheios de entusiasmo ignorando a ausência de música. Uma moto de barulho insuportável pareceu roçar as costas do velho. Nada de Feliciano. No coreto, depois de longo rodopio, o jovem caiu exausto, a moça riu. Bento não. O peso dos anos não permitia mais a ele ver o mundo com devaneios românticos, também não havia mais tempo para projetar futuro. A alegria dos jovens no coreto era, para ele, uma provocação à sua existência débil, cujo maior acontecimento que podia esperar era a própria morte.
Este era, exatamente, o assunto que o fizera ligar para o amigo. Impressionado com a Sessão da Saudade oferecida à Veridiana e ainda mais com a fala respeitosa e admirada de Eduardo, o velho escritor desejou tal carinho para si. Entretanto, por não conseguir ter com o filho e sequer reunir desprendimento capaz de resolver tal questão, fazia-se necessário morrer. A isso ele daria jeito, mas precisava de Feliciano para organizar tudo e trazer seu filho Eduardo para a cerimônia.
– A morte redime.
Ao sabê-lo morto, talvez Eduardo tivesse um mínimo de compaixão e proferisse também um discurso repleto de carinho. Eduardo era bem capaz do perdão, ele conhecia o filho; entendia, porém, que a mágoa ainda fosse maior que o desejo de perdoar. Mas quem fica indiferente à morte? Mais ainda: à morte do próprio pai? Morrer era um bom plano, não apenas para receber reconhecimento póstumo, mas porque a saúde não ia bem e viver já não bastava. Além do mais, quem não desejaria ter uma linda cerimônia, ser lembrado por todos, ser homenageado pelo filho?
O relógio apontava mais de oito horas e nada de Feliciano. No coreto, agora, brincavam três crianças tolas. Avistou o amigo vindo da direção do Mercado Municipal, levantou-se para recebê-lo, mas, ciladas da vida, viu o amigo ser lançado longe por uma caminhonete. Vagou a cadeira 14 e Bento não podia morrer.
A homenagem a Feliciano Fausto foi ainda mais bonita e comovida. O salão principal do velho clube nunca recebera tanta gente. Feliciano era muito benquisto, fazia o tipo bonachão, brincava com todos, escrevia crônicas muito bem humoradas, fruto de seu bom humor e sua excelente memória, que buscava causos sabe-se lá de que recôndito. A viúva, dona Francisca Fausto, leu carta que escrevera de próprio punho para a ocasião. Lamentou os anos que ainda lhe restariam sem a presença do amado e do quanto a obra dele era importante para a cidade de Tapeia. O coral da empresa em que Feliciano trabalhou cantou duas canções; uma delas, composta pelo próprio imortal. Bento cumprimentou Francisca Fausto com sentimento e antes de se despedir, comentou com sinceridade:
– Era minha vez, não a dele.
Optou por ir andando para casa, que não ficava distante. Levou consigo, no olfato e na memória, o perfume da viúva, o mesmo usado por Sofia e deixado na cômoda no dia em que ela o abandonou. Era certamente o mesmo frasco, dado ao Feliciano num momento de desapego. Agora, o perfume vinha trazer de volta lembranças que ele não mais queria ter. Atravessou a praça, chegou à Rua Cândido Portinari, onde a vida de Feliciano terminara. Parou. Um carro que vinha em sua direção desviou, subiu na calçada derrubando sacos e latas de lixo e parou a centímetros da vitrine da livraria. O motorista, possesso, saiu do carro e voltou-se para a rua com ganas de xingar o velho incauto, mas não o encontrou. Bento havia retornado praça adentro e parou no Mediterrâneo, um bar com estilo inglês e mesas na calçada. Sentou-se ao balcão e pediu uma cerveja. Tomou dezessete. Fechou o bar, foi levado para casa por Demétrius, o garçom que, agora, mais do que ninguém naquela cidade, sabia da história e da angústia do velho escritor.
Bento não se deu conta naquela noite, mas acabara de iniciar uma leal amizade com o garçom do Mediterrâneo, a quem presenteou com seus livros e recebeu visitas frequentes para cafés e conversas. Demétrius era um pouco mais novo que Eduardo e, de certa forma, supria a ausência do filho de Bento. Enquanto o escritor falava-lhe de literatura e contava velhas histórias, o moço contava-lhe dos acontecimentos que presenciava nas noites do Mediterrâneo. O imortal não fazia lembrar em nada o velho hostil e cheio de soberba que se tornara nos últimos anos. Viu renascer uma certa alegria, uma trégua com o amargo da vida. Os encontros tornaram-se mais frequentes e Demétrius lançou mão de suas observações da noite para escrever seus próprios contos, sob rígida supervisão de Bento Queiroz.
– Esse parágrafo é dispensável.
– É importante.
– Para quem?
– É o mais bem escrito do conto inteiro.
– Um parágrafo deve ser importante para a história, não para o escritor, Demétrius. Suprima.
Em outros momentos, falavam de si. Demétrius, o observador, concentrava-se mais em fatos dos últimos meses, desde a abertura do Mediterrâneo, quando passou a ter vida mais ativa, enquanto Bento trazia bagagem de décadas, relembrando, principalmente, momentos de sua juventude. Até que, finalmente, num almoço de sábado, abriu-se ao jovem interlocutor sobre Sofia, seu último grande amor, 35 anos mais jovem, cheia de energia que o fizera remoçar; cheia de bom humor, que o fizera reencontrar o prazer de rir; cheia de vontade de aprender, que lera em poucos meses mais livros do que ele supunha ser possível. Contou a Demétrius sobre a descoberta da gravidez, de seu pedido para que Sofia não levasse aquilo adiante, do abandono, do arrependimento, da tentativa de resgate, dos meses com o menino, da não aceitação do que o menino se tornara, do novo abandono.
– Fazemos escolhas erradas, seu Bento. O tempo todo.
– Você quer dizer que devo aceitar tudo o que errei?
– Talvez seja melhor não se punir.
– A vida já me puniu, rapaz. Vi Sofia morrer diante dos meus olhos, vi Eduardo culpar-me, encaro diariamente a solidão.
Quincas Borbas gemeu, Bento o acariciou.
– Eu sei, Quincas, você é um velho amigo. Mas é apenas um cachorro, o melhor de você não basta.
Quincas deu meia volta e afastou-se, indo deitar do outro lado da sala.
– Ele ficou chateado – comentou Demétrius.
– É só um cachorro cego.
– Ele ouve.
Fez-se silêncio, Demétrius fotografou aquela cena, repassou-a várias vezes em sua mente e questionou: a falta de visão não pode ser um trunfo, se o que se ouve traz esperança?
– O Eduardo tem ido ao Mediterrâneo com frequência – disse o garçom.
– Meu Eduardo? Tem certeza?
– Sim, senhor.
– E como ele está?
– Parece-me bem. Não fica muito tempo. É muito benquisto, pelo que vejo, está sempre rodeado de amigos.
– Amigos?
– Sim. Costuma vir também com uma moça muito bonita.
– Uma moça? – estranhou Bento, fazendo Demétrius perceber a gafe.
– Certamente uma amiga, com quem parece divertir-se muito.
– Você pode fazer um favor, Demétrius?
O jovem ouviu o pedido de seu amigo com atenção e recusou participar do plano do imortal de por fim à vida por uma homenagem à qual sequer estaria presente. Mas prometeu trazer notícias do filho com frequência. Nas semanas seguintes, o fez com detalhes, moldando-as para caberem aos ouvidos de Bento Queiroz, que sorria ao ouvi-las, planejando idas ao bar, na expectativa de promover um encontro casual com o filho. O que nunca aconteceu.
Demétrius acompanhou o definhamento de Bento Queiroz e, num dia de pouco ânimo para o escritor, quando a vida parecia querer abandoná-lo de vez, o rapaz moldou palavras e as encaixou com delicadeza nos ouvidos do homem:
– Seu Bento, o Eduardo aceitou fazer o discurso.
Isso bastou para que o imortal suspirasse profundamente e pela última vez.
Quinze dias depois, o velho clube recebia uma nova Sessão da Saudade. Eduardo abriu o papel que trazia dobrado no bolso e leu para os poucos acadêmicos presentes. Certo que muitos estranharam quando o filho de Veridiana Castanho insistiu em fazer uma homenagem a Bento Queiroz.
Ao final, Eduardo entregou o papel a Demétrius com uma frase que anotara ao final do discurso: “Por uma semana de cerveja grátis, faria homenagem até ao diabo. Vale para hoje?”.
No teto, o lustre de cristais balançava suavemente.