Texto presente para Taíza (Marinaldo de Silva e Silva)
TEXTO PRESENTE PARA TAÍZA
“Não mais me deitar no feno perfumado ou deslizar na neve deserta. Onde eu exatamente me encontro? O que me surpreende é a impressão de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Hoje, que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar unicamente da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida. Acredito que eu consegui fazê-lo. Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos”. Quando meu pai acabou a leitura, minha mãe, intrigada, olhou pra gente e disse: “Essa Simone tá sempre trazendo algo que modifica a nossa casa!”. Ela falava de Simone de Beauvoir, que o velho Antenor, meu pai, tinha trazido aquele dia pra leitura antes do jantar. Eu ficava na sala, às vezes já esperando na mesa, o ritual da poesia que a gente comia junto com a janta. Ele nos alimentava com ela. Acho que, por isso, fiquei assim: mulher de letras, mulher grafológica, mas às vezes – embora quase ninguém espere por isso – também uma mulher grafocênica, grafoabstrusa, grafolúdica. Meu pai, na mesa, mamãe ao lado, a casa inteira respirando as poesias que ele trazia e que eu carrego-as no agora, vindas lá da região do Contestado, dos tempos em que eu já contestava o mundo, do tempo em que eu já sabia que havia nascido no tempo certo, como Clarice Lispector. Lendo um poema por dia, meu pai oferecia tudo que tinha: uma imensurável vontade de partilhar o pão, meio Jesus, meio Zaratustra. Ele gostava do marido da Simone, o Sartre, aquele que dizia que o inferno são os outros. Mas ele também gostava duma que dizia que “Ainda que fôssemos surdos e mudos como uma pedra, a nossa própria passividade seria uma forma de ação”. Meu pai gostava da rima poesia-filosofia, a rima mais rica, eu alimentava. Ele sabia que os filósofos explanavam os temas que os poetas já haviam se debruçado…
Escrevi em primeira pessoa esse primeiro parágrafo, meio heteronômio como foi Pessoa, brincando de ser Taíza, a Maravilhante, como forma de transpor-me para o olhar de uma das mulheres mais imparáveis da cidade. Uma mulher que coleciona títulos e respeito, que coleciona olhares e aplausos, que coleciona alunos e mestres. Ao reler o texto da sua posse na Academia, percebo um pouco da sua trajetória. Até sua entrada eu só conhecia de uns 20 anos pra cá. Ela à frente do Proler, à frente de projetos literários, sempre ao lado da leitura, sempre ao lado da palavra, sempre ao lado da linguagem, sempre dentro dela, misturando-se: mulher-palavra, mulher-afeto, mulher-discreta, mulher-avanço, mulher-trovão. Escrevo este texto-presente como uma forma de comunicar a minha presença, diante das ausências não calculadas no calendário prévio de cada ano. Escrevo na ânsia de trazer um sorriso, na ânsia de capturar um momento na sala de jantar, ou na soleira da porta, onde uma menina brincava com palavras e as montava de forma genial, construindo poemas de ligação, e não apenas verbos. Escrevo para você, Taiza, admirador que sou, embora meu olhar escape dessas averiguações, porque a minha admiração ela é meio de oração, daquela que só entendo quando estou resguardado de tudo, paro e penso como o mundo é maravilhoso ao saber quanto histórias de pessoas como você ajudam a construir. Taiza engenheira, Taiza botânica, Taiza construtora e levantadora de pedras, aquela que desloca a linguagem! Taiza que viu tantas sementes e generosa, ensinou a semear. Até que o campo ficou lindo!
Marinaldo de Silva e Silva

