Textos escolhidos da AJL: “Alqueives de agosto”, de Joel Gehlen

Em agosto, os trigais espigados começam a morrer. Foi mais ou menos nessa época que conheci o trigo. Era o inverno de 1972. Nosso pai chegou da cidade com o dia pelo fim. Trouxe consigo o indefectível farnel com que se voltava daquelas breves idas ao mundo. Mas aquele não era um saco qualquer, desses feitos com fios de sisal. Era uma embalagem com três camadas de papel! – um luxo bem mais raro de se ver lá nas barrancas do Mamborê. Colocou a novidade sobre a mesa da cozinha, iluminada pela luz incerta do lusco-fusco e as chamas dançantes do fogão a lenha. Todos fomos chamados a ver a boa nova, inclusive nós, os meninos pequenos. Eram sementes.

Nosso pai pediu ao Luiz – o irmão mais velho nas lides do campo – que preparasse a quadra em frente de casa, uns dois hectares de terra plana, ao lado da estrebaria, cobertos de pastagens, onde se fazia o manejo das vacas de leite. Na manhã seguinte, muito mais cedo que de costume, nosso irmão arreou a junta de bois e se fez a lavrar o chão. Primeiro, tombar com o pesado arado; depois, gradear. A semeadura se fez num ritual entre festivo e sagrado. Os pés descalços calcando as sementes no berço da terra fofa. Ao depois, tudo foi novamente amanhado com a junta de bois e a grade. Antes de brotar, os alqueives mourejaram por algum tempo a eito de sol e em papas de chuvas.

Naquele inverno, todos os cuidados foram dedicados ao trigal. Amávamos seu viço verdejante. Quando veio a estiagem de agosto, a plantação começou a amarelar e morrer. Ainda tenho para mim aquela coisa boa, quase ruim, de ver a lavoura secar. A messe sendo feita a mão e cutelo, os feixes carregados nos braços como criança de colo. Depois de secados no terreiro, os fardos foram passados na trilhadora do seu Albino Hoffmann. Rendeu bons 15 sacos de cereal, que foram levados para virar farinha na pedra mó da atafona do seu Armino Appel. Então, num fim de tarde de sábado, lá pelos idos de outubro, nossa mãe fez a primeira fornada de pão de trigo. Servido de uma generosa fatia, saí a caminhar pelo arvoredo. Como no poema de Li Po, éramos três: eu, minha sombra e a Lua, em companhia daquela textura de pão de trigo assado em forno a lenha, que evanesce na boca e grassa por todos os sentidos. Foi meu primeiro estado místico.

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