Tutti buona gente (Hilton Görresen)
TUTTI BUONA GENTE
Hilton Görresen
Morro de inveja dos artistas participantes de programas tipo “esta é sua vida” ou “homenagem ao artista”, nos quais amigos e parentes dão depoimentos sobre a pessoa em destaque. Todos os homenageados, sem exceção, são modelos de virtude. Todos são bons pais, generosos, humildes, ótimos amigos e colegas. Tutti buona gente. Nem um estrelismo, nem uma invejazinha, nem uma ponta de egoísmo ou arrogância, nem uma puladinha de cerca, nada. Gente perfeita, essa da classe artística.
Imagino um programa desse tipo a fim de homenagear um ocupante de cargo público conhecido por embolsar nosso dinheiro, por meio de corrupção, de superfaturamento ou de outras tramoias.
Abre-se uma janela no canto da tela da TV e surge um amigo de infância: Fulano é corrupto, mas é bom amigo. Sustenta três mulheres com as respectivas famílias, mas nunca fez alarde disso, é tão discreto que nem mesmo uma sabe das outras.
Depoimento de um colega: Na última negociata com empreiteiras, que lhe presentearam com algumas propriedades, o que fez? Ao invés de registrar todas elas em seu nome, como seria de direito, não titubeou em distribuí-las em nome de dezenas de parentes e amigos.
Outro colega: Fulano tem um coração nobre, nunca se esquece dos amigos. Sempre ofereceu parceria nos negócios mais rendosos. Lembro de uma época em que eu andava na pior. Somente com a aprovação de um projeto de sua autoria em meu benefício, consegui saldar todas as contas e ainda comprar um apartamento para minha am… digo, secretária.
A irmã mais moça, visivelmente emocionada: Oi, Fulano. Lembra uma vez, quando éramos crianças, você roubou minha boneca preferida e a vendeu para a filha da vizinha? Mas para não me ver triste, você acabou não entregando a boneca. Quando a menina veio reclamar o dinheiro de volta, você simplesmente negou que tivesse feito negócio com ela. Foi, como sempre, firme e inflexível em sua capacidade de negar qualquer coisa até o fim. Que Deus continue lhe abençoando, pelo irmão carinhoso que você sempre foi.
Uma eleitora: Fulano é um santo. Conseguiu emprego para toda nossa família. Até minha sobrinha de quatro anos é assessora em uma estatal. E nem precisamos comparecer ao serviço. Ele mesmo recebe nossa grana (subtraindo naturalmente sua merecida parte) e nos vem entregar em casa. É pouco, mas dá para ir levando, com a graça de Deus. É de homens assim que precisamos para nos representar.
É, leitor, como eu gostaria de escalar um amigo desses para me defender no dia do Juízo Final.
CRONICA PUBLICADA NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 17.02.2018