Um conto de amor sem diálogos (Milton)
UM CONTO DE AMOR SEM DIÁLOGOS
MILTON MACIEL
O mais perfeito dos amantes! Como poderia ela pensar em viver sem esse homem?
Ainda há pouco ele a tinha amado como nunca. Ou seria melhor dizer… “como sempre”? Ah, cada vez que, ao final, ele levantava da cama, ela ficava com essa sensação: foi melhor, ainda melhor do que antes. Mas eram amantes há mais de 5 anos… Como podia?
Ele o gerente da Transportadora, o homem de máxima confiança, o braço direito do grande chefe. Que era também o grande corno, o esposo dela, seu maldito marido há mais de 15. Ela havia aguentado estoicamente o convívio com aquele troglodita. Porco, sem higiene. Violento, não poucas vezes havia batido nela.
Mas rico, riquíssimo, cada ano mais rico. Explorando seus caminhoneiros, seus funcionários, sonegando, corrompendo, lavando dinheiro. O cofre secreto em casa cheio de dólares e euros, de diamantes. E as contas no exterior, então! Porém, a essas, só o desgraçado tinha acesso.
Mas tinha aquela que era a maior transportadora do Sul do estado. E imóveis sem fim. Aquele mundaréu de caminhões… nunca tivera condições de saber a quanto montaria todo o patrimônio daquele orangotango. Nunca, até começar seu caso com o jovem gerente, que tudo sabia.
Era fatal que acontecesse. Ela tão bonita e tão mais moça que o marido primata. O rapaz ainda mais moço do que ela, elegante, sedutor. Ela com eterno nojo dos momentos em que o grosseirão a mandava preparar-se porque ia…usá-la! Uma vida amorosa nula, uma vida sexual horrorosa. Sabia-se irremediável prisioneira: tinha medo mórbido do marido violento. Divórcio? Como, se ele tinha poder de vida e morte naquela cidade: advogados, delegado, juiz – todos comiam na mão dele. Ele não perdoaria jamais a afronta; muito menos aceitaria dividir quaisquer bens com ela. Pedir o divórcio era o caminho mais certo para ser morta na hora.
Mas o macaco gostava dela. À sua maneira esquisita, mas gostava. Embora tivesse mulheres fáceis à vontade e se espojasse com elas, gostava de frequentá-la também. E gostava de exibir toda a sua beleza e classe pela cidade.
Faziam um estranho casal: ela uma ex-miss, uma beldade loira e alta. Ele um anão de jardim, um palmo mais baixo que ela, gordo, careca, simiesco, feio, sessentão. Ele a exibia como o animal mais exótico de sua coleção, o mais caro que ele podia pagar: cobria-a de joias e roupas de grife, proporcionava-lhe spas, salões de beleza, peelings, liftings, plásticas – qualquer coisa que ela inventasse para fazer-se ainda mais bela e invejada na cidade. O preço a pagar? A eterna fidelidade, a submissão por toda a vida.
Até o dia em que se viu nos braços do gerente. E descobriu o amor. Descobriu que a vida sexual podia ser maravilhosa, que aquele homem esbelto, asseado, atlético, era o cão em pessoa em cima de uma cama. Tirou-lhe ele todos os medos, todos os tabus, ensinou-lhe os roteiros de prazeres infinitos, a fez amaldiçoar os pastores e a tia carola que a haviam castrado desde a infância.
O macaco não confiava em ninguém. Abria exceção apenas para sua esposa fiel e para seu devotado contador e gerente, que trabalhava para ele desde menino, há mais de 14 anos. Esses dois o conheciam bem demais para saberem que o menor deslize lhes custaria a vida imediatamente.
Resultou daí que a esposa fiel e o devotado gerente lograram o poderoso chefão durante mais de 5 anos. E sempre na própria casa do confiante senhor. Ele jamais suspeitou ou descobriu. Porque morreu antes.
Um dia o ricaço resolveu eliminar um concorrente perigoso. Convidou o dono de uma transportadora rival para um jantar em casa e envenenou-o. A esposinha, escondida, viu-o colocar o veneno no vinho. Os muito ricos podem pagar venenos muito especiais. Esse não deixava nenhum vestígio 12 horas depois de provocar um infarto fulminante. Nas primeiras 12 horas, a pele da vítima ficava avermelhada e, sob as pálpebras, surgiam estranhas manchas roxas. Deixaram o concorrente dormir toda a manhã no quarto de hóspedes; só então “descobriram” a morte do inconveniente. Chamados médico e delegado de confiança, a autópsia deu em morte natural e o caso foi rapidamente arquivado.
A única coisa que o macaco não imaginava é que sua doce esposinha fosse gostar tanto de ter aquele poder de vida e morte, que o marido bandido fazia questão de alardear o tempo todo. O líquido perigoso voltou para o cofre secreto. Mas a beldade loira tinha descoberto o papel com a combinação há um bom tempo. Copiara os números tremendo, mas sabia que jamais se atreveria a usá-los.
Até o dia em que compartilhou-os com o amante. Então os dois acertaram todos os detalhes e, um mês depois, a cidade toda rendeu tributo a seu cidadão mais rico: as mais impressionantes pompas fúnebres já acontecidas no município. Na flor da idade e da riqueza, um infarto fulminante levara-o desta; para a pior, acreditavam todos, porque conheciam seu sórdido passado e presente. A esposa saíra cedo com as duas empregadas da casa, foram para a cidade vizinha, para acompanhar o concurso de Miss local. Quando retornaram, no fim do dia, descobriram o patrão e marido ainda estirado na cama de casal. Estava bem frio e muito morto. Oh, dor!
Agora, 3 meses depois, ela estava em Paris. Esperaria pelo lento inventário. Mas o cofre secreto na casa brasileira, secreto continuou, apenas que vazio. O equivalente a 200 mil dólares dava para começar a fazer a festa na Cidade Luz. Os amantes dividiram o butim, ele se encarregou de lavar e transferir para o exterior a dinheirama. Ficou tomando conta da Transportadora e fazendo o leilão de sua próxima venda aos concorrentes, o que tornaria ambos arquimilionários, tão logo concluído o inventário.
Agora ele tinha chegado a Paris. Foi para o apart-hotel onde ela vivia, fizeram amor como nunca. Ou como sempre. Depois renovaram seu votos de amor eterno e confirmaram seu plano de ação. Assim que se passasse um ano, haveriam de se casar no exterior. Brindaram com o melhor champanhe francês.
Duas horas depois a arrumadeira voltou ao apartamento da moça linda brasileira no Boulevard Lannes; havia esquecido seus óculos de leitura. Usou sua chave.
Gritou!
No chão, a senhora loira e o seu namorado jaziam inertes. Suas peles estavam incrivelmente vermelhas de ponta a ponta. E, sob os olhos arregalados deles, estranhas manchas roxas escureciam-lhes as pálpebras. Caídas perto das mãos de cada um, taças haviam vertido restos de champanhe.
A polícia brasileira descobriu depois: Ela amava demais seu amante, mas não o suficiente para ter que casar com ele e dividir toda a fortuna e liberdade recém-conquistadas. Na pasta dele e no seu cofre de banco, no Brasil, encontraram documentos com falsificações da assinatura dela, passando vários bens para o nome dele. Como procurador da beldade loira, ele já tinha vendido muitos outros bens. Amava-a. Mas…
Compartilhavam apenas o segredo de um veneno. Cada um fez uso do segredo na hora que lhe pareceu mais adequada. Coincidiu de ser a mesma.
Enfim, como dizem los hermanos, “Es la história de um amor”.