Um galo grifa o canto (Joel)
Um galo grifa o canto
Quinta Sincrônica, Joel Gehlen, 23.01.2020
Um galo cantando longe é mais triste do que perto. Um galo cantando longe grifa o canto. Está fora do terreiro, é quase outro planeta, uma nota de melancolia dentro da garganta que faz haver outra órbita e repousa como ondas nas areias do deserto. Um galo à vista, quando canta, explicita aquilo que não se capta só de ouvido. Um galo que se vê cantar é uma partitura aberta, um sustenido que desperta tinturas madrigais. Por mais alto seja onde o bico aponte, tem a linha da garganta que se estica e o ruflar de penas. Enquanto canta, agarra a terra com fisgas, arpões e âncora. E sagita o canto pelo arco cósmico; e é tanto, que granjeia a via-gálea, regurgita a ânfora e poliniza estrelas metafóricas.
Vê-se que existe sem lacunas, o galo que canta enceta a goela como faz o engolidor de facas. E se por descuido algo roa o monólito do timbre, um grão de pedra instala-se na moela e desperta sua propensão de ostra. Vocaliza a pérola de orvalho, que freme como se tocada em decúbito, no exato ponto onde nasce o delta dos sentidos. Por outro lado, um galo de outro canto, é intermitente no seu canto. Pelo vento arauto chega em lascas um sonido vago, que a mente, com o desespero de afogado, apela a todos os signos para preencher os haustos. Visto que há distância entre o galo-canto e o ouvido no tugúrio, supõe-se – não sem espanto! – que mora na demora, entre um e outro, o tempo da degola.
O canto do galo ao longe é mais lembrado do que ouvido. Um híbrido imaginado na rinha da memória. Desferido no invisível, é inteiro efeito, como o medo. E o desterro grifa o canto. Os intervalos de silêncio, interseções de sinos, grilos, relinchos, e as cinzas das cigarras. Um cão de outra latitude. Migalha da lua, asa de abelha, picada de vaidade. Sertão, céu sem telha. É mais um grito que um canto. O galo-mito nunca chega inteiro, apenas o bico, arqueado, aquilino e um dorso-canto. Meio-a-meio, ave e felino. E do espanto surge o Grifo!