? “Uma carta de euforia”, de Jura Arruda
A calçada é meu chão. Brinco com pedras. Distraio a dor. A calçada, senzala que é, impede a gente de querer mais. Faz tempo que vim pra cá. Eu nem lembro mais. Só sei que foi verão porque a noite era quente. Depois choveu dias e dias. Depois foi esfriando e esfriando. Meu coração também. Por isso que me chamam de Iceberg, né? Grande e gelado. Só não sou branco. Mas quem é?
A Isabel que desistiu de mim, não fui eu não. Ela que não quis mais. Disse que eu não era homem bom pra ela. Saiu da minha vida e até minha vida saiu de mim. Nem lembro mais a casa que eu morava, era lá pro lado de lá, eu acho… Não lembro como que chega. Minha casa é a calçada. Tá vendo esse desenho aqui? Eu gosto. Olha só, uma pedra colocada de cada vez. Deu trabalho. Quem fez devia receber um bom salário. Eu não ligo que é duro, não. Faz até bem pra minha coluna, não faz? Ortopédico. É isso? Ortopédico.
Não vi mais a Isabel, não. Nem ela, nem a menina. A menina eu nunca vi mesmo. Só a barriga da Isabel crescendo. Sabia que tinha lá dentro uma menina. Lá dentro. A Isabel foi embora, levou aquele barrigão todo e o que tinha dentro só pra ela.
Eu brinco com pedras.
Não bebo muito. Mas bebo. Cachaça. Tem uma bem baratinha naquele bar ali. Eu divido. Cachaça e cigarro a gente divide, a dor é que a gente não divide, né? Cada um já tem a sua. Nem sei onde tá a minha. Acho que congelou no meio do coração. Nem sinto mais. Guardei tão bem que nem sei onde que a dor tá. Tá com a Isabel, tá com aquele barrigão. Ah, já nasceu! A Isabel não tem mais barrigão agora. Tem uma menina. Eu não tenho a menina. Nem tenho a Isabel mais.
Eu sei ler. Leio tudo. Fico lendo placa, fico lendo nome de loja. Jornal também, mas eu não gosto muito. Tem muita desgraça. Eu não gosto de ler jornal. O que eu queria ler? Mais que tudo? Uma carta da Isabel pra mim. Se eu recebesse uma carta da Isabel me contando tudo, dizendo que a menina cresceu, que parece comigo, que é inteligente, eu ia ficar muito feliz. Uma carta de euforia da Isabel dizendo que eu não preciso mais ficar preso aqui, que eu posso voltar pra casa e pôr a mão naquele barrigão. A Isabel não tem mais barrigão.
Meu endereço é aqui. Sem número. Correio passa sim. Mas acho que a Isabel nunca mandou nada. A carta ainda não chegou, né? Se chegar? Se chegar a carta de euforia da Isabel? Eu vou pular de alegria. Vou mostrar pra todo mundo. Vou ficar feliz se eu receber a carta de euforia da Isabel pra me tirar daqui.
Uma carta de euforia
Acadêmico Jura Arruda