Uma chávena de chá para setembro (Joel)
Uma chávena de chá para setembro (para Fernando Fernando José Karl, José Maschio e Roberto Maruyama)
A cerimônia do chá é das coisas que tenho aprendido com mestres. E ler se parece com essa arte. Das leituras, a mais plena e inintencional, na qual se pode repartir o silêncio sem diminuí-lo, ao sentir o perfume da clorofila ao despertar de seu breve interregno. Primeiro, pensar que em algum lugar, num tempo que não é esse, alguém acordou cedo para cortar ramos de folhas intumescidas, ainda orvalhadas. Carregadas pela distância em grandes fardos nas costas, foram desidratadas, trituradas e embaladas. O caminho foi longo entre máquinas e homens, para estarem pontualmente nesse encontro com uma porção de água fervente dentro de uma xícara, diante de ti.
A infusão desperta aromas, cores e sabores que se multiplicam bem abaixo dos olhos e narinas, na decifração que antecede as papilas gustativas. Deixe em suspenso o gosto da bebida e ponha-se a pensar na rota-d’água, igualmente misteriosa, que se desvia da sua samsara sem fim, para repousar a xícara, pelo tempo exato que durar seu pensamento. Ambos são caminhos circulares, num eterno recomeço. Esse punhado de folhas trituradas soube cumprir o seu ciclo, desde a semente até a árvore, ao extrair da terra os minerais, ao tragar a luz e o ar, ao ler sua partitura genética e constituir magicamente os elementos sensoriais que nesse instante abrem em ti as percepções da sensibilidade. Basta dares o primeiro gole, e o trem dessa longínqua viagem pousa numa estação, para embarques e despedidas. Mas aqui ainda não é o seu destino e, depois de recolhidos os novos passageiros, há de prosseguir.
Uma xícara de chá é tudo que posso compartilhar ao ocaso de setembro. Um festim paupérrimo; um sutil repasto na iminência do ordinário. É dos mais humildes dos prazeres, encontrável até na mais modesta das habitações. Entanto, um deus completo mora nesse brevíssimo ato de levar a porcelana à boca. Um deus cabe nesse beijo entre lábios entreabertos e a louça, suspenso na estase do êxtase. Olfato e paladar perseguem as pegadas da água, do ar e das folhas, recolhendo vestígios de manifestações alhures. À chávena da escrita resta sorver o momento que antecede o primeiro gole e faz girar a chave, enquanto lá fora setembro morre.
Crônica Joel Gehlen, 28 de setembro de 2017