? “Solidão viva”, de Nelci Seibel

SOLIDÃO VIVA

O homem caminhava trôpego. De vez em quando, meio de lado olhava para trás, com resmungos, projetando uma figura desconcertante. Sua camisa amassada, que já vira dias melhores, metade dentro da calça e outra metade fora. A calça já deve ter sido beije. Era comprida demais e atrapalhava seu andar com os chinelos de dedo, também grandes demais para seus pés. A cor da pele revelava genes africanos, de várias gerações anteriores. Cabelo em desalinho, no rosto sustentava um bigode mal aparado e um brilho de suor acumulado, como se untado fora com óleo ou outra gordura.

Cerca de quinze passos atrás vinha uma mulher, a própria figura do destrato. Calça preta e blusa que penso já ter sido branca. O cabelo desgrenhado, preso de mau jeito na nuca.

Levava uma trouxa imunda em uma das mãos, certamente contendo todos os seus pertences. A mulher caminhava curvada para frente, parecendo faltar-lhe firmeza, enquanto reclamava. Começava com um grito rouco, cujo tom baixava à medida que a frase acabava. De onde eu me encontrava, na varanda do terceiro andar não entendia o que dizia, mas pude supor que exigia do homem, provavelmente seu companheiro, que a esperasse. Pelo andar e comportamento dos dois era difícil acreditar que não estivessem drogados ou alcoolizados.

Ao chegar à esquina o homem parou. Olhou e reclamou. Olhou e reclamou. Quando a mulher estava próxima começaram a discutir e se xingar. Compreendi pelos sinais das mãos que debatiam para que lado ir. Parecia claro que não tinham destino fixo, ou seja, casa. Enfim, tomaram à direita. Não mais os via, mas ainda pude ouvir as xingações. Fiquei parada ainda uns bons minutos sem me mexer, em meio às plantas que eu cultivo com carinho nessa varanda. Fiquei triste e, ao focar as plantas, tinha certeza de que elas compactuavam comigo.

O casal, se é que era um casal, de onde teriam vindo? Cansados, sujos e famintos. Onde passariam a noite? E antes disso, onde tomariam banho, se alimentariam? Céus! Grande infelicidade a que acabava de presenciar. Dois seres humanos, rejeitados por si mesmos e pelo mundo, reunindo sua solidão viva em um único poço de infortúnio e desventura.

 

Nelci Seibel

 

 

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