📖 Milton Maciel (Marinaldo)

TEXTO PRESENTE PARA MILTON MACIEL

Espero que todos tenham tido um bom dia. Informo, de antemão, aos cardíacos e os fragilizados, por favor: se quiserem, podem sair da sala porque eu lhes darei um susto. Sim, um susto! Porque quem vocês veem aqui não é um homem, nem alguém que esnobemente intitularam de imortal. Aqui, diante de vocês, está um escritor fantasma. Um Ghost Writer, como intitula o modus operandi estaduzinense de colonização. Um “cuco que choca seus ovos no ninho de outro”. Essa é a minha função. Há um sujeito, em mim, falando por outro, que também é um escritor fantasma. Adquiriu uma corporeidade na palavra que se estende em mais de trinta livros, creio que quase quarenta. Ele tem a voz rouca, é escritor estridente, entrementes, respira madrigais musiqueiros. Aqui, materializado e non sense, surrealizado, me ficciono para apontar esse homem. Testado pela Deusapalavra, ele é poeta, antes de tudo, todos somos. No meu princípio “no principio Deus era poesia”, e continua assim até hoje. E acredito, fantasma que sou, que meu comparsa de letras carregadas de significados é semelhante a seu criador, e na poesia vaga. Se não, como teria trajetado até aqui acreditando na força da história, transformando a glória da história em narrativa fictória? Como teria escrito para criança uma história tão comovente? Como teria tornado crente o fato de eu, fantasma apenas, estar aqui, corpóreo, escrevendo sobre pessoas, valores e dilemas? Como não seria poesia o escritor que a cada reunião nos brinda com um poema? Cantando, tocando, adestrando a curvatura do tempo? Trazendo respiro e vento para, às vezes, uma noite tão fria?
“É preciso que os poetas falem roucos / Livre, soltos, desmiolados, doidos, loucos/ É preciso que os poetas cantem soltos / Os seus ais de mares mansos ou revoltos.”
Eu, ainda quando era invisível por vocês, já o vi declamar. Já o vi cantar, tocar teclado, dar aula de piano, treinar professores, falar sobre livros digitais, sobre os anais da diagramação, sobre a força da mão ante a razão da história. Já o vi se passar por historiador sendo muito mais interessante, já o vi repaginar a história, falar da dor de uma menina. Eu já o vi metamorfose. Já o vi em congressos visigodos, parando guerras nucleares, já o vi tecendo conspirações lunares em meio a inquisição. Homem interessante este escritor que também é fantasma. Homem interessante no meio da multidão este escritor que fala dos pampas como quem se abre a um irmão.
E tudo começou assim: “Minha santa Tia SANTA chegou logo depois do almoço com um presente para mim. Colocou-me no colo e abriu-o. Era uma caixa, no interior da qual havia um monte de pecinhas de madeira, com símbolos coloridos impressos. Eram LETRAS. O presente era um abecedário! Devo aduzir que nasci num lugar privilegiado, uma cidade única que pertence a dois países: Rivera, o lado uruguaio, Santana do Livramento o lado brasileiro. Não existe fronteira. Um traçado irregular de ruas não nos separa, nos une. Ali todos falam português e todos falam espanhol, sem sotaque.”
Sem sotaque, sem esnobês, mesmo falando em português, inglês, francês, sinto que você, que neste momento já se movimenta e se apresenta também além do fantasma que está em seus registros, também é essa cidade fronteiriça onde todos falam a mesma língua. Como as “carruagens de fogo” do grupo Vangelis, você se apresenta como uma vitória. Instalando concessões, mas nos apresentando a literatura como quem abre uma sessão de cinema. Em teu livro-poema, “A princesinha que Dançar”, traz uma história incrível, bem mais bonita que Andersen apresentou. Se não é mais bonita, tem a nossa brasilidade, a nossa ginga, a nossa prosa ritmada em tudo e nada, choque da nossa intensidade. A narrativa, quase didática, ensina de forma simpática valores que aos poucos são esquecidos. Um texto bem grande finalizado neste jeitinho:

“Na verdade, os três governam, O poder foi dividido. A rainha e seus dois filhos Fazem um governo unido. Trata a rainha do povo, Das casas, da Agricultura. Juliano, da Economia. E Samantha, da Cultura.O reino agora prospera E todos têm na lembrança: Foi a Arte que os libertou, A arte nobre da Dança.Por isso esse povo Dança, Dança em qualquer ocasião. E, dançando, manifesta À princesa gratidão. Quanto ao rei Don Mabiel, Não pensem que é infeliz. Ele agora está vivendo. A vida que sempre quis. Emagreceu e então se fez Astrônomo de renome. Descobriu tantos cometas Que um, agora, tem SEU NOME!

Mas foi no teu texto crônico, naquele mais cru, que encontrei uma força estridente. Em texto que fala tanto da gente, tanto da sociedade, tanto do que fazemos aqui, tanto desta cidade, tanto deste universo, ele tão fora do verso… Falo da menina que disse que cobraria “só cinco”. Que deu origem a Lolita de Aracaju, o primeiro livro seu que tive a curiosidade de ler. No meio do tempo que nos enleia, fui aos poucos entrando em sua teia. Para chegar até aqui, desfantamisado, comi muito sapo, segui seu conselho: “coma seu sapo vivo logo ao início da manhã, e tudo o mais, durante o resto do dia, não haverá de ser mais complicado”. Enfrente a morte, o tempo ardente, a impressão visual, o deslocamento da retina, a cortina da boca que, torta, ainda sorri. Coma um sapo vivo logo ao início da manhã. Cobice-se. Anime-se. Insufla-se. De música. Pode ser o canto dos bugres, a bolha dos bagres, o vento dos pampas, as conchas do mar. Ouça Vangelis. Ouça as carruagens de fogo. Elas estão chegando. Ouça o trote dos cavalos, a roda das carroças, a virada do motor, o engate seco da correia, o visgo do óleo, a gordura visceral do sangue, a nobreza das vidas fecundas de tuas artérias. Toque piano para os amigos. Afine-se desafinando. Atropele o tédio. Amilte-se. Maciele-se. Coma seu sapo vivo logo no início da manhã para chegarmos no café da tarde em meio a imortalidade. Não de gente como eu. Não de ninguém deste salão. Mas à imortalidade da palavra. Essa Deusa que Milton Maciel tanto honrou. Essa menina da história que fala por ele. Ela, grande escritora. Dona Palavra. A Ghost Writer de Milton.

Acadêmico Milton Maciel
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