Meu tio Fonseca

FOMOS VISITAR O TIO FONSECA. Uma visita bárbara. Ele morava na cidade vizinha, numa propriedade distante, entre morros e um riacho de águas turvas. Era irmão do pai. O fordeco velho gemia no barro mole. Em troca de uma dívida antiga, o fordeco veio parar em nossas mãos.

Tio Fonseca estava bêbado. Sentado no varandão, o garrafão de cachaça ao lado, dizia coisas do arco da velha, em voz alta.

– Esses meninos são extraordinários, Antonio!  Eles viverão um tempo novo, cheio de sabedoria – e me olhava, sorrindo. – Esse daqui se parece comigo quando criança… É o David? É mesmo, acertei na mosca! Está crescidinho. Com certeza já tem cabelinho nos debaixos! Ah, ah, como ficou envergonhado! Eu também tinha muita vergonha…

O pai quis mudar de assunto:

– E, aí, mano, o que vai plantar este ano?

– Nem pensei ainda… Estou aborrecido com a política agrícola. Os preços despencaram. Mas os insumos subiram o dobro. É possível isto? Então a gente planta só pra tratar das multinacionais e do governo… Coitados desses boias-frias…

– Coitados?!

– Eles querem terra e vão tê-la. Mas, e daí? Morrerão de fome do mesmo jeito. Não há política agrícola. Então não haverá crédito. Percebeu? E, assim, mesmo que tenham seu pedacinho de terra, nada farão. Nada é a condição. Depois, os tempos estão mudando: máquinas potentes invadirão o campo e o balão dos empregos murchará. Quem ficar só com as forças das mãos, conhecerá mais miséria… Nas fazendas, não ficará mais ninguém. Só as máquinas poderosas!

O resto do assunto não ouvi. O tempo estiara um pouco. Eu e o Mauro saímos num breve passeio. A propriedade era mal cuidada. Pomar e plantações estavam no mato.

– Ele mora sozinho? – perguntei.

– A tia morreu há anos e os filhos foram embora.

– Deve ser ruim…

– O quê?

– Morar sozinho num lugar como esse…

Em seguida, voltamos. Começara a chover. Tio Fonseca mascava tabaco e cusparava azedo. E bebia mais um gole. A mãe fizera café na cozinha e agora nos servia. Tio Fonseca não quis. “A melhor água do mundo é a destilada!” – e riu de forma escancarada.

– Fico contente! – disse e me olhou. – Os dois estão estudando. É isso! Por favor, coragem, não abandonem os estudos. Esse país precisa de cultura. Estamos numa merda porque o povo é burro. Há muitas riquezas por aqui, mas a burrice não deixa ver. O mundo das enxadas já se foi. Vem, agora, o mundo dos computadores. Todo mundo andará com um pequeno computador nas mãos. Será um mundo bem melhor…

Entrou porta adentro e trouxe três grandes cadernos.

– Vejam! É um livro! Estou quase no fim.

Um livro esquisito. Escrito a mão. Puro garranchos, letras miúdas e tortuosas.

– Vai ser pancada. Não tem nada parecido. Faz anos que venho escrevendo. Aqui, nestas páginas, tem de tudo! Até solas de sapatos e ilusões perdidas!

E ria. O pai calara-se. Olhava, do varandão, as terras mal cuidadas. Terras boas e naquela situação: ervas daninhas prosperando.

– A arte é tudo; por isso, eu vivo. Já dizia Hipócrates: “A arte é longa, a vida é breve”.

E caiu num silêncio mortal. Quase nada disse após essa confissão. Mais cachaça bebia.

– Está na hora. Vamos embora!

Pelas estradas enlameadas o fordeco gemia e deslizava. O pai estava preocupado:

– A cachaça vai liquidá-lo…

– Por que ele masca tabaco? – perguntei.

– Que cheiro horrível! Azedo… Me dá enjoo – reclamou a mãe.

– Gosto não se discute. De uma coisa é certa: se este país fosse feito por homens assim, o mato tomaria conta de tudo e nós voltaríamos a viver como selvagens.

– É verdade que está escrevendo um livro?

– Você não viu, seu bobo?! – Mauro falou.

– Pra que livro? O que ele vai fazer com um livro? – engrossou a voz o pai. – Isso não dá comida pra ninguém. Ele devia, sim, é estar cuidando de suas lavouras. Vocês viram? Ervas daninhas por todo lado. Por Deus do céu, se vocês dois estiverem estudando pra ficar igual ao Fonseca eu me envergonharei. Aquilo não é vida. Até parece que ele perdeu a ambição! Fala de um mundo que não existe. Máquinas, computadores…

– Ah, ele não quer ser mau – interferiu a mãe. – Só acho que está faltando uma mulher naquela casa. Que cozinha imunda. Quase não tive estômago para fazer o café. Moscas, moscas e moscas! Faz anos que ele não varre a casa.

– É o que digo: de que adianta ficar escrevendo livro? O homem tem que agir. Nem parece meu irmão…

A conversa parou por aí. O fordeco encalhara. A carroceria resvalara no barranco. “Mais essa, agora! Todos pra fora. Só no braço essa coisa sai daqui!” – ordenou o pai.

 

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