Solidão (Salustiano)

Solidão

Dobrou de leve o joelho direito, retesando a perna esquerda, pondo-se na posição do guerreiro empunhando a lança. O lusco-fusco da madrugada só me permitia ver a silhueta sob o fundo esbranquiçado da cerração que pairava sobre o mar parado.

Levou a chumbada à boca, abriu a mão em leque recolhendo nova braçada e arremessou a tarrafa, num movimento gracioso, porém farto de energia. A tarrafa rodopiou numa dança cadenciada, descrevendo um círculo no ar e caindo sobre a água, que candidamente marulhou, absorvendo lentamente os salpicos que se formaram até desaparecer por completo na imersa imensidão.

Vagarosamente sacudiu a corda, sopesando-a, perscrutando na busca de vibração e lentamente a foi soerguendo, dissipando suas esperanças, junto comigo, a cada curta laçada, que lentamente envolvia no antebraço e pousava sobre o fundo da bateira.

Não sabia quantas lançadas já dera, não me preocupara em contar, apenas o tinha acompanhado absorto, fincado sobre os cotovelos no beiral da velha janela da pousada, segurando o rosto com as mãos, de onde ele aparecera pelo lado esquerdo, numa meia bateira que logo se revelou inteira.

Estava só, assim como eu, unidos pela solidão daquela madrugada fria, de triste cerração, que dissimuladamente pretendia fumegar sobre o cândido mar. A praia de Paulas dormia languidamente sob o céu que agora começava a burlar o cinza da madrugada, tenuemente colorindo-se ao longe, num pedaço que só se podia ver pela nesga da baía que adentrava no mar grosso. Furtivamente, sem vontade, espio as praias à direita, Pontal de um lado e Capri do outro, que, com suas parcas luzes acesas, espremem o mar na entrada da baía, tremeluzindo o quase insignificante laranja do alvorecer.

Volto a mirar o agora um pouco mais perceptível pescador. A ansiedade me faz perceber que dera outra lançada, estando já a recolher a tarrafa, na mesma cadência compassada, na mesma esperança resignada.

“Quem era?”. Um homem, me diz a silhueta entrecortada do alvorecer, solitário de meia idade, unido a mim na mesma solidão voraz e insone. Com família, certamente. Paciente, pois silenciosa e perseverantemente busca peixes. Instintivamente sente a tarrafa a cada vez, tensiona a corda e procura o estremecer revelador de uma pesca farta. O que seus olhos pedem? Busca a fartura? Ou talvez queira um só, grande o suficiente para mostrar aos amigos na roda de aguardente.

Hemingway me vem à cabeça, com seu “O Velho e o Mar”. Aqui também se desenrola a épica busca perseverante que a natureza conduz com maestria. Aqui a luta é contra o desalento da eterna busca, a resignação de tentar sempre e sempre.

Mais uma lançada. Mais uma recolhida. Mais um vazio, que se reflete também em mim. Não vejo seu rosto, mas sinto sua angústia. A bateira começa a esconder-se por detrás do umbral da janela. Passou no tempo de algumas lançadas e povoou minha solidão com perguntas sem respostas.

O laranja da aurora tenta avançar na nesga de mar que abraça meus olhos, desprendendo a cerração que teima em dissimular-se sobre a água. Continuo imóvel, arrimado sobre os cotovelos, as mãos apoiando o queixo hirto. A tristeza que povoa minha solidão aparenta a cerração que teima em pairar sobre o mar.

Lá fora a cidade ainda dorme.

 

Salustiano Souza

 

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