? “Os dentes do tubarão” (Marcelo Lufiego)

PREFÁCIO

Esta é uma obra de ficção, que utiliza como pano de fundo elementos culturais.

Marcelo Lufiego

 

OS DENTES DO TUBARÃO

 

“Um índio desceu há mais de mil anos, e muitas famílias indígenas nômades com ele, não de uma nave extraterrestre resplandecente, nem de uma estrela cadente, tampouco de um raio cósmico de luar, mas do coração da Amazônia, onde rios gigantescos formam as maiores artérias da Terra, em direção ao distante litoral brasileiro”

 

A Ocupação do Litoral Brasileiro

Primitivamente composta por povos nômades, a grande nação Tupi-Guarani é originária das selvas amazônicas. Das exuberantes florestas equatoriais ao sul do grande rio, habitando originalmente os vales dos Rios Xingu e Madeira. Movidos pela necessidade, representada pelo mito da “Terra Sem Males”, esses povos iniciaram[1] uma épica migração em direção às terras meridionais, descendo os Rios Paraguai e Paraná, e pelo litoral, a partir da foz do Rio Amazonas, iniciando a ocupação pelo Maranhão até chegar ao extremo sul do Brasil. A primeira horda de indígenas que se estabeleceu no litoral foram os Tupinambá, razão pela qual são considerados os “pais de todos”, sendo também os mais conhecidos. Constituíram uma população com mais de cem mil membros e ao chegarem nas terras litorâneas iniciaram o combate aos habitantes mais antigos, os bárbaros ou tapuias, descendentes dos ainda mais longevos sambaquianos. Os Tapuia acabaram sendo expulsos, na grande maioria, para o interior ou foram dizimados.

Em 1500, quando Cabral avistou o Monte Pascoal, todo o litoral já estava ocupado pelos Tupi. Eram raras as exceções: os Tremembé, numa razoável extensão de terras do litoral norte; os Aimoré, ao sul da Baía de Todos os Santos, cercados por todos os lados de Tupinambás; os Charrua, nos Pampas, ao sul de Porto Alegre, em direção a Buenos Aires; os não menos temíveis e mais respeitados na guerra, índios Goitacá, personagens principais deste texto, ao longo das duas margens do médio e baixo Rio Paraíba do Sul, entre Macaé no Rio de Janeiro e o sul de Vitória, capital do Espírito Santo. Esses povos pertenciam a troncos linguísticos diversos e eram inimigos mortais dos povos Tupi, que os tratavam como bárbaros. Muitas famílias da grande nação Tupi tentaram banhar-se na lagoa Goitacá; não conseguiram. Na Lagoa Feia, como é chamada por nós, apenas os jacarés e os guerreiros da nação Goitacá mergulhavam nas águas. Aliás, se necessário empreender fuga, o índio Goitacá mergulhava nas águas da lagoa mais próxima, onde se escondia como um verdadeiro homem-rã, para logo em seguida contra-atacar com toda a fúria. No continental litoral brasileiro, o oposto dos Goitacá eram os Carijó, no litoral catarinense, os mais dóceis das costas sul-americanas orientais. Ao final, todos terminaram mal: a nação Carijó escravizada para a lavoura e a Goitacá vitimada por armas biológicas[2].

 

 

Um Presente de Grego

Martim Afonso de Souza não era flor-que-se-cheire; confirmem lá em São Vicente! Utilizou sua influência junto a D. João III, a favor de Pero de Góis, que assim recebeu a Capitania de São Tomé, terra dos mais ferozes canibais brasileiros, os Goitacá! Um verdadeiro presente de grego, como puderam constatar logo em seguida. O donatário então, deu início à tentativa de ocupação de suas léguas de terra, onde hoje temos o município de São João da Barra, último baluarte de água-doce, porque depois ela se torna salgada, com o desaguar do Rio Paraíba do Sul no Oceano Atlântico. Auxiliado por Martim Garcia, um amigo pessoal, acompanhados de cerca de três dezenas de pessoas, na ilusão de dias melhores, construíram rústicas moradas, erguendo pequeno povoado entre o mar e a floresta, ao qual deram o nome de Vila da Rainha. Na praça, levantaram uma enorme cruz de madeira, símbolo da fé para uns e do imperialismo religioso para outros. Ali, com o plantio das primeiras mudas, foi introduzida no Brasil a cana-de-açúcar, que mais tarde, e sobretudo no solo massapê nordestino, se tornaria num dos principais ciclos econômicos da história da economia colonial. O diminuto povoado pouco tempo resistiu aos ataques ferozes dos índios mais aguerridos do litoral atlântico sul-americano. Os que não morreram flechados, fugiram abandonando tudo. O sonho com as riquezas da terra, minérios, drogas do sertão, pau-brasil, se transformou num trágico pesadelo e o modesto empreendimento colonial fracassou. Resultado, aliás, comum em quase todas as capitanias hereditárias, com apenas duas exceções: São Vicente, do próprio Martim Afonso e Pernambuco ou Nova Lusitânia, de Duarte Coelho, que efetivamente introduziu o cultivo de cana-de-açúcar em larga escala no Brasil. Pero de Góis retornou à Lisboa e as terras ficaram abandonadas até o século XVII.

 

O País Goitacá

Esses índios indomáveis, grandes corredores e nadadores, se mostraram ferozes combatentes, resistindo com determinação, força e destreza à grilagem das terras litorâneas pela imensa nação Tupi. Os Goitacá habitavam uma pequena porção do imenso litoral entre os Tupiniquim e Temiminó, do célebre Araribóia, ao norte, e os Tamoio e Tupinambá, ao sul.  Ao poente se deparavam com a Serra da Mantiqueira, despontando a grande montanha de quase três mil metros de altitude, cuja sombra, no crepúsculo, se projetava a quilômetros de distância, fazendo a noite chegar mais cedo. Região lacustre, com destaque para a imensa Lagoa Feia, não muito distante de onde hoje temos a cidade de Campos dos Goytacazes, numa área compreendida entre Macaé, Juiz de Fora, Muriaé e Cachoeiro do Itapemirim, o país Goitacá era formado por terras planas, cortadas pelo Rio Paraíba do Sul e pelo Rio Itabapoana, que antes de chegar na planície costeira, ao descer precipitado as encostas da serra, formava cinematográficas cachoeiras. Terras marcadas pela presença de pântanos, alagadiços, grandes lagoas e exuberante floresta ombrófila densa, detentora da maior diversidade de árvores do mundo. Um paraíso perigoso e selvagem, habitat da onça-pintada, às vezes toda negra, da gigantesca sucuri e da temível cobra-siri-malha-de-fogo[3], ainda presente nas matas remanescentes, cuja peçonha apresenta devastadora ação hemorrágica e neurotóxica, levando à morte na quase totalidade dos casos.

Um país paradisíaco e ao mesmo tempo permanentemente perigoso, com água, rios, lagoas e mar. Uma terra coberta pela Mata Atlântica, repleta de goiabeiras, guajuviras, araçás, paus-brasil, urucuns, palmitos, paus-ferro, ingás, jerivás, canelas e um sem número de espécies frutíferas e sombreiras. Algumas com mais de 20 metros, mais de 30, no alto das quais a águia sorrateira predava o macaquinho desatento. Um bioma, antes magnífico, hoje devastado pela ação colonização da lavra dos invasores portugueses e de seus descendentes, que, na verdade, somos nós.

 

A Nação Goitacá

Os Goitacá não eram parentes dos Tupi; eram seus inimigos mortais. De fato, eram inimigos de todos e, quando não tinham um adversário externo, guerreavam entre si. Peri, para defender sua Julieta, cujo nome todos conhecem, obviamente que o amor é mais forte que tudo na vida, não hesitou em enfrentar a seus primos Aimoré, do mesmo tronco linguístico macro-jê de seus pais. Peri, um Goitacá, um Tapuia no dizer da grande nação Tupi, é o maior herói indígena da literatura romântica brasileira. Peri era um Goitacá sim! E José de Alencar, porque era um romântico, tinha todo o direito de transformar-lhe a personalidade. No lugar do verdadeiro Peri, um índio furioso e canibal, o grande escritor cearense, nos trouxe um Peri apaixonado e com os cabelos curtos, capaz de amar uma flor como se fosse o mais sensível dos poetas. Todavia, o colosso físico, a determinação e a coragem, espelham a realidade Goitacá.

Estou propenso a aceitar a possibilidade de que o americano John McTiernan e o austríaco, depois também americano, Arnold Schwarzenegger, em 1987, ao produzirem o filme “O Predador”, para criar o alienígena, tenham se baseado no modelo de um guerreiro Goitacá. Notoriamente, criaram um tipo mil vezes mais feio do que esses índios neobrasileiros[4]. Contudo os traços físicos principais são os mesmos. Os guerreiros Goitacá eram os índios mais altos e fortes de todo o litoral brasileiro. Sua estatura excedia a dos índios Tupi; apresentavam uma compleição física vigorosa, um biótipo atlético, capaz de façanhas como a que veremos a seguir, na Iniciação do jovem Goitacá ao status de guerreiro. Neste diapasão, o elemento que sacramenta a semelhança do “Predador” com o colossal índio sul-americano é o ornamento da cabeça, raspada até o topo e mais além, e pelas laterais e parte de trás longos cabelos, esvoaçando no rosto. Assistam a cena.

Os cronistas do passado são unânimes em relatar que eles eram os melhores corredores da mata, persistindo no folclore a ideia de que agarravam um veado na corrida. Mais uma vez o cinema americano: no final do ano de 2006, no filme Apocalypto, dirigido pelo astro Mel Gibson, vibramos com a cena na qual o protagonista, o índio Jaguar Paw[5] disputa uma corrida frenética de fuga com uma onça negra em plena floresta, e escapa! Mais uma vez o modelo poderia ser o de um Goitacá correndo na mata.

Além de altos e musculosos, os guerreiros Goitacá se diferenciavam dos índios Tupi por terem uma pele mais clara, embora estivessem longe de ser brancos, registro que faço apenas a título de constatação e não por ser um ideal. Outra diferença fundamental: os índios Tupi eram antropófagos, comiam a carne humana com requintes ritualísticos, os índios Goitacá eram simples canibais. Para os povos da foz do Rio Paraíba do Sul, a carne humana era mero mantimento, devorado quase cru, e em decorrência de simples necessidade fisiológica, a fome. Ceci deve agradecer muito a José de Alencar, pelo perigo que, afinal, nunca correu, porque sentimentalmente seu Romeu era o oposto de seus irmãos. Para os povos Tupi comer carne humana era um processo sofisticado, muito além da Cerimônia do Chá praticada pelos Samurais. O Banquete Antropofágico[6] despertava paixões, umas controladas, outras tantas completamente descontroladas. Não era exatamente a carne humana o prato principal, mas a energia, a magia, o inefável poder nela contido a maior das iguarias! Um canibal Goitacá comia um braço, por exemplo, pelo motivo que já dissemos, a fome. Um antropófago Tupi, só comeria um braço, se fosse de um valoroso guerreiro, autor de façanhas memoráveis, que embalassem a todos em torno da fogueira, nas noites de lua cheia e muito cauim. Hans Staden, com todo o respeito ao mito e ao serviço que nos prestou registrando posteriormente os fatos vivenciados, escapou não porque fosse mais inteligente ou “bonito”, mas porque era “cagão”, perdoem a palavra. Imaginemos aqui entre nós, transportemo-nos no tempo, para imaginar a decepção dos índios Tupinambá, seus captores, quando o alemão, não sem as mais compreensíveis razões, chorou como uma menina de sete anos. Tanto é verdade, que não foi “degustado”. Um “cagão”! Foi o suficiente para os maiorais da Tribo se entreolharem. Contudo, não se pode tirar todo o mérito do alemão, que apanhou das mulheres e crianças e sofreu o assédio psicológico de guerreiros cruéis diariamente por um longo, longo tempo, quando se tem a perspectiva de morrer comido por selvagens. Assim, Hans passou exaustivamente por etapas do sofisticado ritual antropofágico, do qual o Banquete, o dia “D”, que para ele nunca chegou, era a apoteose desse detalhado processo autenticado pelas memórias mais distantes de povos selvagens, mas cheios de requinte. Os Goitacá não eram requintados, eram guerreiros furiosos! Peleavam feridos e até a morte, como verdadeiros “predadores” que eram.

No entanto, nos tempos sem guerra, e eram muitos, porque a vida passava na velocidade da natureza, os Goitacá, assim como os Tupi, eram filhos do Paraíso Terrestre. Seres humanos coloridos, que viviam nus nas florestas, no entorno das lagoas, nas restingas, nas praias, nas margens do rio, adornados por penas e plumas de pássaros magníficos e com a pele recoberta pelo extrato de jenipapo. Seres humanos, sem escrita, vivendo na Idade da Pedra, mas que sabiam ler magistralmente nas entrelinhas da mãe-natureza, que retiravam dela o complemento para a emulação de existências humanas plenas, sem onerar o meio-ambiente. Ao contrário, eram o elo mais esplendoroso de um quadro natural fruto da imaginação do Grande Geômetra e Senhor dos Mundos.

 

A Véspera da Iniciação

Para o jovem Goitacá chegara o momento da maioridade. A prova começaria a partir de amanhã, sempre minutos antes do crepúsculo, ou ao raiar do dia subsequente, e assim por quantos dias necessários até que fosse alcançado o intendo ou que o iniciando morresse tentando. Desistir sem obter êxito seria muito pior que morrer. O risco, como todos na tribo sabiam, não era pequeno; se algo desse errado, seria enorme e mortal. O pedaço de pau-ferro era o mesmo usado por seu pai, muitos anos atrás. Uma honra que repercutia entre todos, pois o jovem era filho de um famoso guerreiro, matador de inimigos poderosos. Como em toda véspera de um grande acontecimento, o dia seria de contemplação, de caminhar pelas cercanias da aldeia, próxima ao local do desafio, levar os cachorros e seus irmãos menores para passear. Não estava enamorado, não podia arriscar que sentimentos e paixões diminuíssem a precisão de seus movimentos, a força e destreza de seus vigorosos e ágeis braços, a capacidade de enxergar debaixo d’água. Sobrevivente, o namoro viria depois, com bastante ardor e prazer. Agora, somente interessava vencer as enormes dificuldades inerentes ao rito de passagem de um jovem da tribo para o status mais elevado de guerreiro da mais temida das nações indígenas, os Goitacá!

O céu azul e o Sol ainda muito longe do meio-dia, a agradável brisa marinha, o concerto de vozes da floresta, animaram o jovem Goitacá a levar as crianças e os cachorros para um piquenique nas cercanias da aldeia. Alguns minutos andando pela trilha repisada, após a travessia de um estreito riacho, outeiro acima, o grupo chegou a um agradabilíssimo bosque de Jerivás, cujas frutinhas maduras, alaranjadas e vermelhas, faziam os indiozinhos – e os cachorros – salivarem de desejo. As maritacas, periquitos e papagaios já estavam presentes, se banqueteando no maior alvoroço. Do alto do suave outeiro, o jovem índio não pode deixar de fixar o olhar no local onde a partir de amanhã deveria enfrentar o perigo, superando o medo, para se tornar um adulto, um guerreiro, respeitado e admirado pelos parentes, que não eram poucos e estavam na maior expectativa sobre o que iria acontecer. Mirou, por alguns instantes, que pareceram eternos, a cabeceira do grande rio e as ondas do mar, no encontro das águas. Aproveitou para não pensar. Queria apenas admirar o palco daquele perigosíssimo desafio. Contudo, e isso era o mais importante, sabia que estava preparado e que muitos guerreiros antes dele e não tão fortes fisicamente, se saíram vitoriosos do porfiado combate entre o homem e a fera do mar. Confiava na própria força e na técnica que lhe fora passada e repassada muitas vezes pelos mais velhos e por todos aqueles que sobreviveram e atingiram a maioridade, além do que era um exímio nadador, com o corpo moldado há anos para nadar com velocidade e fôlego. O jovem Goitacá era um índio todo ossos, todo músculos, toda força direcionada para vencer. Tinha medo, mas este sentimento só aumentava sua determinação e desejo de superar o que parecia impossível. Tanto é que, mesmo com a estupefata unanimidade dos cronistas dos primeiros tempos do período colonial, até hoje todo mundo duvida. Os membros da grande nação Tupi não duvidavam, sendo a carne Goitacá a mais concorrida no Banquete Antropofágico. Para um Tupinambá, comê-la, era adquirir instantaneamente superpoderes. Neste sentido, as forças mágicas do mundo, também estavam ao seu lado, simbolizadas pelo pedaço de pau-ferro, que não chegava a dois palmos de comprimento, mas que era a única e mais poderosa arma para enfrentar o perigo, obtendo o necessário para ser um homem e um guerreiro.

Amanhã seria o começo de uma vida de guerras e de vitórias ou seria o começo do fim. Hoje ainda não! As crianças brincavam fazendo tanto barulho quanto um bando de periquitos Tiriba-de-testa-vermelha, que acabara de chegar. O entorno das boquinhas todo melado de tanto comer coquinho. Corriam umas atrás das outras, misturadas aos cachorros, que por sua vez estavam tão bem adaptados ao meio, que pareciam fazer parte da fauna autóctone das selvas Goitacá, mas tinham chegado há anos com os homens de barba vindos do outro lado do mar. Alguns cupinzeiros ornavam o bosque de jerivás. De repente a cachorrada, num frenesi raivoso, mas titubeante, rosnava e corria em torno de um montículo abandonado, aparentemente, pelas térmitas. Os cupins, realmente, tinham ido embora, mas havia outro ocupante. Dos que rastejavam no chão, o mais perigoso. Este era o trabalho dos cachorros, proteger os seres humanos, as crianças sobretudo, das serpentes peçonhentas. Eram preciosos auxiliares também para manter as onças afastadas. Eram, no entanto, comumente, presas de sucuris, abundantes nas lagoas e alagadiços da região. Uma vez enroscados pelo gigantesco ofídio, raramente se salvavam. Hoje, no entanto, a cobra, que não era uma sucuri, mas uma siri-malha-de-fogo, assustada, logo fugiu para o interior do monte e ninguém se feriu, muito menos os indiozinhos, que mesmo na tenra idade sabem que toda anormalidade é a priori perigosa e não se aproximaram. Dentre as crianças, as mais velhas eram duas meninas de 8 e 9 anos, a um passo de deixar a infância. Ambas eram irmãs do jovem Goitacá. Foram elas que saciaram a sede de todos, pois traziam consigo, cada uma, a sua cabaça d’água. O povo Goitacá, aparentemente por superstição, mas no fundo devido a um ensinamento ancestral, em condições normais, não tomava água direto dos rios e lagoas. Saciada a sede, todos seguiram o irmão mais velho pela trilha conhecida, o solo totalmente gasto e comprimido, que levava até a beira da praia, descendo o outeiro dos jerivás por uns trezentos metros pela vertente em oposição às palafitas, onde moravam. Após quase uma hora de banho de mar, o tempo estava maravilhoso e o calor convidativo, o grupo retornou à aldeia, fazendo pequena parada para comer os frutos de um pé de cambucá ao lado da trilha. Como a jabuticaba, o cambucá dá seus frutos direto no tronco, para a alegria de todos e duplo divertimento das crianças. Enquanto isso . . .

 

A Patrulha Tupi

Vindos de longe, há dias de viagem pelas matas e pelas praias, quatro guerreiros Tupinambá, sorrateiros e extremamente alertas, se esgueiravam pela floresta Goitacá. Sua missão era observar e, se possível, tirar alguma vantagem. Ao chegarem próximos à foz do Rio Paraíba do Sul, percebendo a aldeia inimiga, guerreiros experientes, procuraram um esconderijo em terreno alto, do qual pudessem ver, sem serem vistos. E assim permaneceram observando a cabeceira do rio, as praias e a parte da aldeia Goitacá visível do ponto onde estavam. Em silêncio, faziam um rodízio na espreita, permitindo que todos tivessem a vez para descansar, recompondo as forças para eventual assalto aos bárbaros ou para o retorno ao seu país, o mais rápido possível em caso de serem descobertos. Salvo, se preferissem ficar e lutar até a morte certa, o que também era uma opção considerável, desde que pelo menos um escapasse levando as informações obtidas. Ali permaneceram ao longo da tarde e da noite, observando o movimento da Aldeia e do jovem Goitacá em especial, que, duas horas antes do nascer do dia, se dirigiu sozinho para a praia.

 

A Iniciação do Jovem Goitacá

Os primeiros raios solares despontavam no horizonte, colorindo o céu do oriente sobre o Oceano Atlântico. O jovem Goitacá sabia exatamente o local propício para mergulhar. Próximo da cabeceira do rio, no lado sul da aldeia, quase em frente ao covil dos inimigos Tupi, que a tudo miravam atentamente e no mais profundo silêncio, havia uma vala natural muito apreciada pelas tartarugas marinhas. Os guerreiros Tupi observavam sem imaginar o que pretendia o jovem Goitacá, que de repente passou a caminhar em direção ao mar. Metros antes de molhar os pés, parou e, com o olhar no infinito, encomendou a alma para Tupã. Trazia na mão um diminuto pente com três dentes feitos de espinhos de tucum[7]. Fez um pequeno arranhão do lado esquerdo do peito, rasgando a pele em três filetes de sangue e adentrou ao mar. Totalmente nu, levava consigo apenas o pedaço de pau-ferro de seu pai, muito bem seguro na mão esquerda.

O dia amanhecia e a visibilidade embaixo d’água ia aumentando. A visão, somada à destreza e à força, seria vital para o sucesso de sua caçada. Nadando sobre a vala que se formara há alguns anos paralelamente à praia, fez o primeiro mergulho, anunciando ao mundo marinho a sua presença pelo sangue. A profundidade não passava de poucos metros e pode examinar o entorno por vários segundos. Subiu à superfície e voltou a mergulhar, avistando agora um enorme vulto que se aproximava. Mais alguns instantes e uma Tartaruga-verde se revelou em toda a sua leveza, parecendo voar embaixo d’água. O jovem Goitacá, num rápido movimento, segurou-lhe a parte posterior e se deixou levar por uma centena de metros ao longo da vala. Não encontrou o que estava procurando. Subiu à tona para respirar. Observou a superfície do mar por um bom tempo e mergulhou mais uma vez. Nada avistou. Mergulhou várias vezes e nada. A primeira tentativa estava encerrada. Voltou para as areias da praia onde descansou, sem desconfiar daqueles espias mal-intencionados, que acompanhavam todos os seus movimentos. Os guerreiros Tupi não atacariam de dia, pois o alarido que vinha de longe, da aldeia, indicava a possibilidade de que outros inimigos andassem por ali. Permaneceriam em seu esconderijo até o cair da noite, comendo sementes, que sempre traziam consigo.

O jovem Goitacá, após um rápido descanso, o corpo quase seco, se dirigiu à sombra das árvores. Não retornaria à aldeia antes de completar a tarefa, tampouco seus familiares viriam à praia. Só quem podia acompanhar o iniciando até o local e permanecer observando eram os anciães da tribo. E o velho curandeiro estava lá desde o início. Só não desconfiava que também era observado de longe pelo inimigo. Abordando seu pupilo, que descansava, com um extrato de pimenta, dentro de uma pequena caçamba, adrede preparado para a ocasião, untou os três arranhões no peito do jovem. Circundando o corpo do rapaz com uma dança de passos misteriosos, enquanto entoava um cântico aos deuses, salpicava-lhe a pele com uma mistura de ervas que somente ele conhecia. O corpo estava novamente fechado e a alma segura.  Agora era só aguardar o crepúsculo. As mulheres lhe trouxeram comida e mais água numa cabaça especial, ornada com os símbolos da menoridade. Vieram descendo a trilha aos gritos para anunciar sua presença. Não podiam, sob nenhuma hipótese, ser vistas pelo jovem iniciando; se o fossem, sofreriam severa advertência e castigo, suspendendo-se a Iniciação até que os sábios da tribo decidissem por fazê-la novamente. Isso servia para os homens também, com exceção dos membros do Conselho de Velhos. As índias deixaram os alimentos no local de costume, antes de chegar à praia, e voltaram correndo para a aldeia. Mais uma vez fazendo o maior alarido. Se tudo ocorresse dentro do esperado, se a fera fosse morta e conquistados os símbolos da maioridade, seria a última vez que tocaria naquela cabaça. A água estava deliciosa; a comida também, uma espécie de ensopado de fígado de veado e sangue misturado com ervas e farinha de mandioca. Passaria o resto da tarde no local, esperando aquela que seria a hora derradeira.

A tarde de verão ia chegando ao final e este era um momento propício para encontrar a fera. Teria pouco tempo até que a escuridão impedisse a continuidade da caçada. Repetiu o mesmo gesto, pediu a proteção dos deuses e de Tupã em especial e rasgou novamente o peito, agora no lado direito, com o pente de três espinhos. Enquanto o sangue descia sentiu uma sensação inquietante, como se estivesse sendo observado pelas mulheres. Olhou no entorno, mas como nada se mexia, deu os primeiros passos e mergulhou no mar. Embora o Sol já se encaminhasse para o poente, as águas ainda estavam razoavelmente claras. O jovem Goitacá então nadou submerso e a princípio nada avistou, senão uma miríade de pequenos peixes, que brilhavam próximos à superfície com a incidência dos últimos raios de sol. Emergiu para respirar e quando mergulhou novamente percebeu um grande vulto se aproximando, atraído pelas partículas de sangue. De pronto, soube que não era uma tartaruga, pela maneira como o bicho nadava. E a sombra vinha rapidamente em sua direção. Avançou em direção a ela com toda a concentração possível, quase que enxergando com a intuição. Não teve medo quando, a poucos metros, identificou a fera. Os deuses haviam ouvido o seu pedido e o gigante que vinha em sua direção era um Tubarão-Cabeça-Chata, a mais feroz de todas feras marinhas. Comedor de homens e tartarugas, de golfinhos e outros tubarões, inclusive da própria espécie. Que embate! Que contenda espetacular! Canibal versus canibal! Homem versus tubarão! Um investindo ferozmente contra o outro. No momento derradeiro, no instante do choque, a enorme boca se abriu para a mordida fatal, mas não se fechou. A Iniciação se realizava. O pau-ferro cravado no interior da boca. O tubarão se debatendo, girando em torno do próprio corpo e o guerreiro que nascia, segurando firme sua inesperada arma. As pontas afiadas do pau-ferro penetraram na cabeça do animal, que continuou se debatendo, agora com o pavor em seus pequenos e arredondados olhos, percebendo instintivamente ter encontrado um rival mais poderoso. Um guerreiro Goitacá, matador de tubarões! Morta a fera, as últimas forças foram gastas para retirá-la das águas do mar.

Um jovem mergulhara, um homem saia das águas, um índio comedor de gente, furioso e intrépido guerreiro. Um matador de tubarões, como seu pai e avô e seu pai e avô, até que a memória se perdesse nas longínquas brumas do passado remoto. Os guerreiros Tupi, embora não tenham presenciado os momentos mais terríveis da batalha no fundo do mar, assistiram estarrecidos a caçada do tubarão. Era desconcertante ver um homem entrar na água e sair carregando um troféu tamanho. O caçador de tubarões era prêmio muito maior do que poderiam ter sonhado com aquela incursão no território inimigo, a princípio apenas para observar.

Não pensaram duas vezes e nem precisaram falar. Enquanto o guerreiro Goitacá arrancava um a um os dentes do tubarão, os de cima triangulares e serrilhados e os de baixo parecendo verdadeiros pregos, símbolos e prova da maioridade conquistada, sob o olhar orgulhoso do curandeiro, um dos Tupi, sorrateiramente, aproximou-se por trás do velho e rapidamente, sem nenhum ruído degolou o pobre coitado. Os outros três caíram sobre o exausto guerreiro e conseguiram capturá-lo. A noite já tinha caído e apenas o luar iluminava o caminho de volta. Os guerreiros Tupi tinham, portanto, uma noite de vantagem, até que o povo da aldeia descobrisse o acontecido na manhã seguinte. Com o guerreiro Goitacá amarrado com rigor, numa espécie de pau-de-arara, sendo puxado com cipós pelo pescoço e pela cintura, e já sob o flagelo dos modos violentos de seus captores, o grupo rumou com pressa em direção ao sul, para o país Tupinambá. O refém sofreria toda a sorte de injúrias e maus tratos, mas não poderia passar fome, nem sede, e muito menos ser ferido com gravidade. Podia apenas ser surrado pelo caminho, sem ser seriamente machucado. Era um prêmio muito valioso, que traria glória e fama aos seus captores, e, com sua carne de valente campeão, muitos poderes àqueles que participassem do banquete antropofágico. E todos participariam, inclusive as crianças! Também era certo que o coração e os olhos estavam reservados para eles, os heróis captores. Prêmio mais do que suficiente para o risco que, a partir daquele instante, passaram a correr.

 

A Travessia da Selva

A floresta atlântica[8] – uma pequena porção de mata, meia dúzia de quilômetros quadrados de área já bastariam – representa para o Brasil, em termos de flora, o que os animais das sufocadas savanas africanas representam para os países da região, em termos de fauna. Uma diversidade campeã mundial! Culturalmente, temos olhos para a fauna africana, mais rica em espécies de grande porte – eles de elefante e nós de anta – mas não enxergamos que em matéria de flora os campeões somos nós[9]. Para os guerreiros Tupinambá, contudo, viajar pela diversificada floresta era como percorrer os caminhos do jardim de casa. Árvores, palmeiras, bromélias, orquídeas, samambaias, avencas, cipós, entre outras plantas, todas eram familiares. Os animais eram identificados pelo som, pelo cheiro e pelos vestígios deixados na mata, invisíveis aos nossos olhos, mas um livro de letras garrafais para os selvagens. Selvagens sim, porque viviam nas selvas[10]! Ao longo da noite, a patrulha Tupi, carregando seu valioso prisioneiro, tinha avançado uma boa distância da aldeia Goitacá, mas a jornada ainda seria longa. Com certeza o inimigo vinha no seu encalço. O passo era apressado; o guerreiro Goitacá tinha pequenos machucados em várias partes do corpo, puxado que era, de forma grosseira, no interior da mata. Nada obstante a pressa evidente, a fuga de retorno estava bem planejada. Os guerreiros Tupi sabiam exatamente onde parar para comer, beber e descansar. Não fossem as várias horas de vantagem, jamais escapariam dos melhores corredores das matas. O guerreiro Goitacá fora capturado logo após a sua Iniciação, ainda terminando de arrancar os dentes do tubarão, os quais foram trazidos como relíquia junto com o prisioneiro. A corrida de volta iniciou antes das 20 horas, em plena escuridão da noite, sendo que o corpo do velho curandeiro só seria encontrado no dia seguinte. Até que o inimigo tomasse pé da situação, achando seu rastro, teriam pelo menos umas dez horas de frente. Mais de 20 quilômetros. Faltariam cerca de 50 até as cercanias da Lagoa de Imboassica, ao sul de Macaé, início do país Tupinambá, onde a população, quase 10 vezes maior, garantiria a segurança contra os bárbaros, que comiam seres humanos sem observar a etiqueta e as regras sagradas da antropofagia. Eram apenas desprezíveis canibais, que, no entanto, caçavam tubarões apenas com um pauzinho e, portanto, sua carne tinha poderes excepcionais.

A Mata Atlântica é o bioma das espécies endêmicas. A Jabuticabeira[11] é um saboroso exemplo. Após um dia e meio de caminhada, o Sol se aproximava do meio-dia, o grupo fez a primeira parada. Um estreito e longo riacho, que penetrava na floresta como uma artéria que leva vida ao corpo. Ao contrário da maioria dos córregos da mata, que correm por dentro da floresta, esse corria a céu aberto por um longo trecho, quando só então mergulhava abruptamente no interior da selva formando uma comprida e delgada cachoeira. Nas duas margens, pequena faixa de areia, literalmente dourada sob a luz do sol, envolvida por gramíneas floridas e só então as primeiras árvores. Uma obra-prima da natureza no seio da floresta. Era o local onde a onça bebia água e caçava. Enormes capivaras. A patrulha se aproximou em silêncio, o prisioneiro tinha sido amordaçado minutos antes, pois sabiam que iriam parar por alguns instantes. Ainda tinham cerca de 6 a 7 horas de dia claro e só parariam bem depois do anoitecer, para descansar no máximo três horas, num esconderijo escolhido e preparado na vinda. Beberam água como cães, ou melhor, como tigres, o prisioneiro sempre vigiado. O jovem Goitacá ao beber direto do rio, pois não tinha outro jeito, sentiu que os deuses realmente estavam contrariados. Enquanto bebiam vagarosamente poucos goles d’água, os Tupi se deliciavam comendo os frutos da guabiroba, os quais foram gentilmente oferecidos ao guerreiro Goitacá, que os aceitou. As arvores frutíferas, mais próximas do córrego do que da mata fechada, estavam carregadíssimas de frutos, que iam do amarelo até o vermelho. Neste quadro natural, emoldurado pelos vários tons de verde da mata e embalado pelas mil vozes da floresta, das quais sobressaía o metálico e melancólico canto da araponga[12], a patrulha retomou a marcha, seguindo pelo riacho quase meio quilômetro para depois enveredar mata adentro. Ainda não estavam cansados e apressaram o passo.

Chegaram no esconderijo, uma pequena gruta no alto de uma elevação do terreno, encoberta pela vegetação, por volta das 21 horas. Confiantes com a superação de mais essa etapa, acomodaram-se, sem esquecer de apertar bem as amarras do prisioneiro, para fazer uma refeição e descansar não mais do que três horas. No local tinha água, brotando das pedras, e comida deixada ali na vinda para saciar a fome e recuperar as forças para a última etapa da jornada, a mais longa, mais de trinta quilômetros. Enquanto dois vigiavam o guerreiro Goitacá, dois dormiam recostados na pedra. Por volta da meia-noite, desceram a pequena encosta do morro e partiram ligeiros pela mata em direção ao sul.

 

A Reação Goitacá

Como de costume, bem cedo, as mulheres levaram comida para a praia. Nada obstante à paz que aparentemente reinava, seus chamados não foram correspondidos várias vezes. Voltaram apressadas à aldeia e alertaram o cacique. Guerreiros foram imediatamente verificar. Pelo menos o curandeiro deveria ter respondido! Pensaram todos. Ao chegarem no local viram o corpo do velho esvaído em sangue. A primeira reação foi correr para todos os lados, enlouquecidos. O tubarão também estava lá provando que o jovem tinha cumprido o Ritual de Iniciação e que se tornara um guerreiro. Teria sido morto também? Onde estaria o corpo? Passado o primeiro momento, retornaram à aldeia aos gritos, sendo ouvidos bem antes de chegar, arrancando a todos das palafitas. A tribo, sem a necessidade de um comando, entrou em pé de guerra. As mulheres e crianças se recolheram sob a guarda de fortes guerreiros e o Conselho de Guerra rapidamente se formou. A decisão foi unânime: estavam em guerra, preferencialmente contra os culpados, se fossem encontrados, ou com os primeiros que encontrassem pela frente, mesmo que não tivessem nada a ver com a investida inimiga. Muitos iriam morrer! O jovem guerreiro de 17 anos era descendente de poderosos guerreiros Goitacá e o curandeiro tinha muitos filhos e crescera lado a lado com os mais velhos da tribo. Tinha quase 60 anos, uma longevidade creditada aos poderes mágicos da natureza. Os melhores mateiros da tribo conheciam o país como a própria palma da mão. Formaram-se oito grupos de quatro guerreiros. Quatro grupos rumaram para o norte em direção ao país dos Temiminó e quatro para o sul em direção ao país dos Tupinambá. Do lado sul, foram achados três dentes de tubarão no início da trilha que levava da praia até o alto do morro do qual se avistava parte da aldeia. Morro acima, logo descobriram, cheios de ódio, o local onde os inimigos haviam estado. As buscas se intensificaram para o sul, pelas praias e pela floresta. A certeza de que os assassinos e sequestradores eram os Tupinambá veio depois de uma hora de procura. Alguém havia marcado com sangue três imbaúbas, uma depois da outra em direção ao sul. No escuro os guerreiros Tupi não perceberam o Goitacá se encostando propositalmente nas árvores. Os grupos de batedores iniciaram uma corrida frenética. Mas estavam 25 quilômetros atrás e os Tupi também sabiam se locomover na floresta, menos rápidos, é verdade, por natureza, e inclusive porque o prisioneiro muitas vezes tinha que ser puxado à força, retardando o passo. Os Goitacá não parariam nem para beber. Correriam trinta horas sem parar, se preciso fosse, e era preciso, pois compreenderam que o inimigo ia muito à frente.

 

A Última Etapa da Travessia

Após um descanso de cerca de três horas, a jornada noturna transcorreu sob fortes pancadas de chuva, aumentando o perigo e retardando a chegada. Amanheceu e a chuva passou. O céu se mostrava colorido pelos primeiros raios de sol de uma nova manhã de verão nos trópicos. A temperatura era de 23 graus e subiria bastante conforme as horas fossem passando. Teriam que fazer uma última parada de três horas para recompor as energias, mas antes correriam o dia todo, apenas parando poucos minutos para beber e comer algumas frutas. O jovem matador de tubarões acompanhava seus captores sem nenhum problema, apesar de amarrado no pescoço e na cintura. Embora soubesse que a chance de que seus irmãos chegassem a tempo era muito pequena, não temia o cruel fim que lhe aguardava. Até sentia uma espécie de mórbido prazer, pois sua morte seria gloriosa. De qualquer maneira, sabia que seria vingado através da guerra! Após várias horas de marcha acelerada, o grupo chegou a uma lagoa paradisíaca. A travessia representaria um importante ganho de tempo, pois tinham, escondida na margem, uma canoa ligeira, também utilizada na primeira etapa da jornada. Seus perseguidores teriam que atravessar a nado ou contorná-la, perdendo precioso tempo. Enquanto remavam, comiam lascas de carne seca, deixadas no interior da pequena embarcação durante a vinda, precisamente para este momento. Enquanto atravessavam a lagoa, os Tupi perscrutavam atentamente o entorno, sem sequer apreciar a beleza edênica do lugar. A leste, em direção do mar, as águas da lagoa desembocavam cachoeira abaixo formando um rio. Bem no centro do caminho das águas, no topo da cachoeira, erguia-se um poderoso rochedo, cerca de um metro acima da superfície das águas, sobre o qual a natureza fizera crescer uma linda palmeira.

Vencida a Lagoa da Itapeba em poucos minutos, o Sol no zênite, o grupo Tupi adentrou por uma trilha na mata fechada. Estavam, ainda, a um dia de casa; cerca de 20 quilômetros. Já se encontravam em plena área de transição entre os dois países e sabiam que os tapuias vinham acelerados em busca de seu irmão, o guerreiro Goitacá, caçador de tubarões. Deveriam estar a poucos quilômetros, mas teriam pela frente a lagoa, que os retardaria o tempo suficiente para que a fuga se completasse. Uma vez atingida a região de Imboassica, teriam conseguido o seu objetivo, pois os perseguidores teriam que enfrentar centenas de guerreiros Tupinambá, provavelmente recuando escondidos na mata, ao invés de se exporem à morte certa. Assim, seguiram marchando o mais rápido possível, numa trilha em terreno íngreme, que não permitia a corrida acelerada. E, além de ter que cuidar de si próprios, o refém só tinha valor vivo; se caísse no precipício não valeria nada, o corpo ficaria lá, para servir de repasto às feras. Já passava da meia-noite, quando fizeram a última parada. Estavam a menos de 10 horas da chegada! Todavia, precisariam recompor as energias, tomando um fôlego, pois o último trecho percorrido foi o mais árduo, com a dificuldade agravada pela chuva torrencial, que desabou ao longo da tarde. Mais uma vez, escondidos na mata, num ponto do qual observavam a trilha, comeram carne seca e beberam água, que jorrava de uma nascente. Enquanto um vigiava o prisioneiro, que permanecia de olhos fechados, mas bem acordado, dois dormitaram e o quarto, o mais atlético e que estava menos cansado, após comer um naco de carne e tomar três goles d’água, seguiu na frente do grupo para contatar o quanto antes as primeiras sentinelas da grande nação Tupi.

 

O Ataque da Cobra Gigante

Boiaçu[13], parente distante de boitatá, vivia sob a pedra. Sua morada era a Itapeba, sob a palmeira de frutos dourados. Naquele dia havia sido acordada pelo barulho de remos na água. O entardecer se aproximava, quando os ferozes índios Goitacá, um bando de 16 guerreiros, enfim chegou às margens da lagoa. Rapidamente flecharam uma capivara, cortaram o corpo, para fazer o sangue escorrer, e jogaram na água, a 50 metros de onde escolheram para atravessar a nado aquelas águas serenas e misteriosas. Rapidamente, a água passou a fervilhar em torno do cadáver do roedor. Não foi possível ver exatamente o que estava acontecendo, mas o s índios sabiam. Irritada com a agitação provocada nas águas, serpenteando na superfície da lagoa como se estivesse voando, Boiaçu e seus 300 quilos de peso, em 11 metros de cumprimento, que a tornavam a maioral da floresta, investiu contra o grupo de índios, que já vinha pela metade da lagoa, com braçadas fortes e determinadas, apesar do cansaço. Apenas 14 saíram das águas. O que vinha na vanguarda, mordido na cintura, morreu já no primeiro golpe e foi levado para o fundo. Neste ínterim, os Goitacá, grandes nadadores que eram, estavam quase atingindo a margem, quando o último do grupo foi puxado para baixo. Ainda emergiu enrolado na serpente, mas só a tempo de dar o último gemido de dor. O abraço constritor acabava de quebrar-lhe a coluna vertebral e as costelas. Boiaçu, foi dormir mais tarde, com a barriga tão cheia, que só acordou dois meses depois.

Os Goitacá não choraram seus mortos; tinham ido direto para o paraíso de Tupã, levados pela Senhora das Águas Paradas, a gigantesca serpente-verde. Após a travessia procuraram a pista do grupo Tupi e acabaram por achar a canoa. Não a destruíram; seguiram em frente no encalço do inimigo.

O Encontro dos Inimigos

A aurora dispensava a madrugada, encaminhando-a para o outro lado do mundo, e enchia o espaço de múltiplas cores, que vinham riscando o céu, logo acima do horizonte, projetando seus reflexos do oriente para o ocidente. Muito depois que a última nação indígena fora exterminada, vários poetas baianos e cariocas cantaram em verso esse quadro de cores e formas misteriosas. Enfim, os primeiros raios de sol despontavam e, hoje, seria um belo dia para matar ou morrer. Todos marchavam apressados! O primeiro Tupi, próximo à Imboassica, no início do país Tupinambá, já avistava os sinais de seus irmãos e vinha pela trilha dando o alarme aos gritos. Dezenas de guerreiros, em torno de cem índios, rapidamente se organizaram e partiram em direção ao norte a fim de acudir seus irmãos, que traziam o mais cobiçado dos prêmios. O grupo com o prisioneiro vinha cerca de três horas atrás e os Goitacá a menos de cinco. Não pararam nenhuma vez para dormir, correram mais de 70 quilômetros e, pelos sinais na mata, estavam quase alcançando o inimigo Tupi. As selvas estavam movimentadas de guerreiros inimigos, que em breve se encontrariam. O encontro entre os dois grupos Tupi era iminente, pois enquanto uns corriam para o sul, exaustos pela longa jornada, outros, um enorme grupo de irmãos, corriam em sua direção, e com todas as forças. A exaustão dos captores também advinha da resistência e da morosidade do prisioneiro, que apanhou muito ao longo do trajeto, sempre sem gravidade, pois era fustigado apenas com tapas e com um pedaço da taquara flexível nas pernas e nas costas, de modo que apanhou, mas não se feriu. Estava, sim, ferido, mas também sem gravidade, devido aos muitos arranhões sofridos na correria. Todavia, iminente também era o assalto dos Goitacá.

A patrulha Tupi decidiu parar e se entrincheirar, aguardando de frente o inimigo, que já havia chegado, encontrando-se a menos de um quilômetro. A chegada de reforço também era iminente; assim, resolveram flechar alguns inimigos antes da luta corporal, que fatalmente aconteceria. Estavam estrategicamente posicionados no ponto mais alto de um outeiro; pelo lado norte vinham os Goitacá, mas pelo lado sul já estava chegando o reforço. O embate seria desigual, com uma centena de guerreiros Tupi para apenas 13 guerreiros Goitacá.

A elevação onde se entrincheiraram não passava de 200 metros de altitude, mesmo assim a parte superior não era coberta por mata fechada, a vegetação era rasteira e arbustiva. O prisioneiro bem amarrado e amordaçado, foi deitado no chão no lugar mais seguro, a vista de seus captores, que temiam o fogo amigo. Os Goitacá chegaram no topo e com seu grito de guerra avançaram sob as flechas Tupinambá. Um guerreiro foi flechado no pescoço e tombou, O Tupi que o acertou foi alvejado por uma flecha que lhe entrou pelo olho direito e também tombou. Outro foi ferido e continuou o ataque, até que os Goitacá estavam em cima da patrulha Tupi, reduzida a dois guerreiros. Em segundos, estavam mortos pelas borduadas do inimigo. Neste mesmo instante, antes que o prisioneiro pudesse ser libertado, um enxame de guerreiros Tupi chegou ao topo, rapidamente cercando o prisioneiro, matador de tubarões, e entrando em choque corporal com os guerreiros Goitacá, que foram trucidados, não sem antes levar para o além um número maior de inimigos. O 14º. Guerreiro Goitacá, que observava tudo de longe, virou o rosto para o norte e correu, como nunca correra na vida, para contar em casa tudo o que acontecera. Deve ter contado, pois meses depois estourou a guerra generalizada, com as investidas Goitacá contra aldeias inimigas chegando a Cabo Frio, onde vivam milhares de índios da grande nação Tupi, todos da família Tupinambá.

 

A Aldeia Tupinambá

Comecemos pela parte interna da oca. Mandi nasceu de um sonho, pois sua mãe, embora virgem, deu à luz dentro da oca. Discriminada pelo próprio avô, que exigia conhecer o pai, Mandi vivia dentro da oca; sua pele clara e seus cabelos loiros, mal conheciam o Sol. No entanto, todas as crianças iam brincar com ela. Mandi, ainda menina, adoeceu e morreu. Foi enterrada dentro da oca. Muitas lágrimas foram derramadas por sua mãe e pelas crianças sobre a terra onde estava sepultada. E, assim, dentro da oca, Mandi renasceu com o nome de Mandioca! A oca para o selvagem, aquele para quem a selva não é mais do que um grande jardim, extensão de sua casa e de seu próprio ser, que é uma pequena parte do todo, é o primeiro reduto aonde de certa forma a coletividade humana, pela primeira vez, se separa da natureza para iniciar o processo de encontrar a própria identidade. A oca é o reduto no qual os olhos são fechados de verdade e o sono uma hipnose profunda. Olhando para a palha da cobertura e para os paus bem amarrados da estrutura, o guerreiro, por um momento, não pensa em batalhas, em caçadas, em embates contra as forças antagônicas da natureza e do sobrenatural. Num instante, o selvagem guerreiro, afinal um comedor de carne humana, se torna no homem que pensa, que sente, se torna no filósofo, que já vem programado no DNA humano, mas que ele pouco compreende.

A oca, em três palavras definitivas, protege da chuva! A casa é a floresta, o pátio é a taba, o campinho é a ocara e o quarto-de-dormir é a oca! Eis o mundo do povo Tupinambá. A porta da oca é feita em forma ogival; passemos por ela. Estamos na ocara, a praça onde tudo acontece. As mulheres preparam grande quantidade de cauim, bebida fermentada a base de mandioca. Mastigam, mastigam e cospem na cabaça. Além de muito apreciado periodicamente, o cauim fará parte do ritual, que se aproxima. Muitas delas, em cintas de algodão, carregam nas costas os curumins. Totalmente nuas, têm os cabelos longos, às vezes entrelaçados em uma ou duas longas tranças descendo sobre as costas. Uma índia mais velha, com os seios muito caídos, o que lhe conferia alto grau de respeitabilidade, ornava a ibirapema[14], delicadamente com um pincel feito de pena, com cores vivas, e grande destaque para o vermelho. Alguns rapazes avivavam a fogueira, que se mantinha há anos no mesmo ponto central do terreiro, em torno do qual as histórias eram contadas e as decisões mais difíceis eram tomadas. Em torno da ocara a taba, o conjunto de ocas, que constituíam a aldeia indígena. Em todas as direções havia saídas que levavam para a lagoa, para o mar e para a floresta.

 

O Caçador de Tubarões

Os guerreiros Tupi, em bem maior número, venceram o confronto com os Goitacá, e traziam exultantes o seu troféu. Três dos quatro membros da patrulha avançada estavam mortos; apenas o batedor, que cumpriu com honra a sua tarefa, sobreviveu à perigosa missão. A ele caberia a primazia no banquete antropofágico e, até lá, o matador de tubarões ficaria sob os seus cuidados. Eufóricos, assim que cruzaram a linha de entrada da aldeia, desamarraram o prisioneiro, mantendo apenas a corda na cintura, que, livre das amarras no pescoço, mãos e braços, passou a bradar:

– Eu sou o vosso inimigo! Eu sou o vosso inimigo! Minha intenção é matar a todos! Eu sou um guerreiro Goitacá!

Foi o suficiente para que os ânimos se inflamassem quase que descontroladamente. As mulheres e crianças cercaram o Goitacá, proferindo toda a espécie de impropérios. Sob o olhar dos homens, passaram a surrá-lo com varas de taquara e tapas. As crianças e adolescentes imitavam. Depois de tê-lo fustigado por mais de uma hora, as índias se desinteressaram do prisioneiro. Foi libertado de todas as amarras, e a partir de então passou a ser o convidado de honra de um grande banquete. Estava totalmente livre de amarras e andava solto pela aldeia. Iria dormir na oca de seu captor e com a mulher dele. Sua missão era engravidá-la. A criança seria criada como filha da tribo, mas um dia, quando crescesse, também seria comida, pois carregaria o sangue do matador de tubarões.  Embora não conhecesse os detalhes dos rituais de seus captores, sabia que a honra não permitia que fugisse; desonraria a todo o seu povo. Ademais não era de seu interesse simplesmente fugir. Ser sacrificado como um super-homem lhe garantiria um lugar no paraíso junto a Tupã, velho pai de todos os índios, Tupi ou Tapuia.

Os dias foram passando. A índia Tupi, mulher de seu captor, com os dentes do tubarão sacrificado, fez um esplendoroso colar para o guerreiro Goitacá, que ao recebê-lo, colocando-o no pescoço, se sentiu ainda mais poderoso; se quisesse poderia fugir da aldeia, mataria vários guerreiros e iria embora. Contudo, não queria! Passou a conviver com seus captores, sob o olhar de todos, pois era mais alto, mais forte, tinha a pele mais clara, intrigando as índias, e ostentava um colar de dentes da mais perigosa fera do mar, o Tubarão-cabeça-chata, temido por todos. Mais de uma índia, no silêncio da noite, com a conivência da mulher de seu captor, adentrou discretamente na oca para dormir com ele; seus genes ficariam por muito tempo misturados ao sangue Tupinambá. Os homens sabiam e, ao contrário de não gostar, ficavam satisfeitos com a mistura de “sangue”. Naquele paraíso primitivo, o sexo não estava associado a tabus, muito menos ao ego dos seres humanos, era algo simples e sem vergonha.

 

Quase Hora do Banquete

Os maiorais da tribo marcaram a data do banquete antropofágico, escolhendo a noite de lua cheia. Os dias e noites passariam rapidamente. A tribo estava eufórica com a aproximação de tão importante evento. O convidado Goitacá recebia as melhores iguarias como alimentação e o rodízio noturno de índias se intensificara. Faltando três dias para o plenilúnio, tudo mudou. O Goitacá foi novamente amarrado e confinado numa oca vigiada. Na véspera do banquete, guerreiros e índias, sorvendo litros de cauim, dançavam, cantavam e bradavam como que enlouquecidos, em torno de uma imensa fogueira. No entorno da aldeia e ao longo da paliçada defensiva, sentinelas de arco e flecha e borduna, mantinham tudo sob atenta vigilância. A rede de postos avançados também estava mais atenta do que nunca. A tribo festejava na cerimônia do cauim, até cair, mas estava bem ciente do perigo representado pelos inimigos, agora furiosos e em pé de guerra, menos pela perda de guerreiros em combate, muito mais pelo desaforo do sequestro e pelo assassinato covarde do velho curandeiro. A vingança não seria um prato frio, mas viria pegando fogo. Aliás, numa guerra generalizada, pois as patrulhas Goitacá que seguiram para o norte, acabaram entrando em conflito com os Temiminó, que nada tiveram a ver com os fatos, e muitos guerreiros acabaram mortos.

O dia tão esperado amanheceu. Exceto pela guarda, a aldeia estava dormindo; muitos índios e índias dormiam no próprio local da festa, em torno da fogueira permanentemente acessa. Apenas uma oca se manteve longe do festim. Dentro dela um impávido guerreiro, o carrasco do Goitacá. Sentado ritualisticamente, com o corpo totalmente coberto de jenipapo, exceto onde tinha suas magníficas tatuagens, o executor do golpe final, apenas esperava a passagem das horas e o chamado do cacique, para a execução de sua honrosa tarefa. As índias mais velhas cuidavam de tudo, pois as jovens e os homens ainda se recuperavam do porre da noite anterior. Um enorme moquém triangular, feito de pedaços de pau-ferro já estava devidamente preparado, esperando partes do corpo do guerreiro Goitacá. Tudo estava pronto! As cabaças para recolher o sangue escolhidas e separadas, a ibirapema exposta em lugar de destaque, com as cores variadas, brilhando sob o Sol dos trópicos. No meio da tarde o prisioneiro foi retirado da oca, e libertado de suas amarras; o povo todo reunido, saboreando o momento ímpar. A prova de coragem teria início. Enquanto tinha o corpo besuntado por uma espécie de extrato de pimenta e outras ervas que não identificou, lembrou do curandeiro, seu velho professor. Estava mentalmente preparado para enfrentar numa luta de borduna três bravos oponentes. Na verdade, existiam, dentre o povo numeroso, guerreiros de porte atlético, mas acreditar que todos eram assim é crer num mito. Muitos índios eram magros ou tinha uma compleição física certamente distante do ideal renascentista, embora a maioria esmagadora gozasse de boa saúde. No entanto, para aquela peleja ritualística de morte, tinham sido escolhidos três vigorosos guerreiros. Depois de minutos de luta, os três estavam mortos, com os crânios esmagados e os miolos espalhados no chão, para repasto dos cachorros. Terminado o combate, o guerreiro Goitacá devolveu gentilmente a borduna, foi amarado pela cintura e novamente desafiou aos brados o povo em sua volta. – Eu sou o vosso inimigo . . . a comoção foi geral e ruidosa, com gritos de guerra reverberando pelo espaço da taba ensandecida.

Anoitecia, no horizonte, sobre o mar não muito distante, uma Lua vermelha gigantesca impressionava até mesmo aos mais velhos. O guerreiro carrasco foi chamado protocolarmente pelos oficiais do cacique, três índias rechonchudas e sorridentes, acompanhadas de uma velha rabugenta.

 

O Golpe Fatal

O povo abriu passagem para o guerreiro carrasco, aquele sim, um índio todo físico, multicolorido, a pele brilhosa sob o plenilúnio, todo orgulho de sua função ritualística, todo fé em sua crença mística. No ponto geométrico por todos conhecido, apanhou o tacape sagrado e numa fração de segundos, quando reinou o mais profundo silêncio, desferiu um golpe violento na cabeça do guerreiro Goitacá, que não morreu e, mesmo com o sangue esguichando literalmente de seu crânio fraturado, teve forças para pular no pescoço de seu carrasco. Por pouco não o estrangulou. O matador de tubarões foi rapidamente puxado pela cintura e recebeu o segundo golpe, agora mortal, com o esfacelamento da cabeça de um super-homem. O pescoço e os membros foram rapidamente cortados e virados para baixo para escorrer o sangue, que índias atentíssimas recolhiam nas cabaças. Os miolos também foram recolhidos, juntamente com as vísceras, depois de limpos os intestinos, tudo iria para as grandes cabaças levadas ao fogo. Um ensopado, com carnes de um bravo, digno de Tupã, o deus do bem! Os dois olhos foram dados para o único sobrevivente da patrulha captora, que os comeu crus e passou a enxergar o mundo com a visão de um matador de tubarões. O carrasco, abalado com a necessidade de dois golpes, foi tratar das dores no pescoço. As índias iniciaram o serviço do cauim, para alegria própria e dos guerreiros. Os velhos também iriam beber até cair.

 

O Banquete Antropofágico

Exceto o coração, dado ao cacique pelo único sobrevivente da patrulha captora e algumas glândulas retiradas pelos próprios curandeiros, sob a supervisão do pajé, um velho, considerado imortal pela maioria, pois tinha mais de 70 anos, caso extraordinário em todas as aldeias, as vísceras e o sangue foram para a panela, e os membros e partes do tronco, os glúteos e parte da cabeça, o que sobrada, depois de duas violentas bordoadas, foram para o moquém. O fogo ardia, mas tudo seria comido quase cru. Todos, sem exceção, inclusive as crianças, pareciam ter entrado em estado de transe, externado por uma alegria incontida, quase descontrolada, com o alarido subindo alto no céu e invadindo a mata quilômetros a dentro. Os braços foram servidos aos principais guerreiros. O restante da carne, pouco passada, aos demais guerreiros, mas toda tribo ganhou um bocado das partes cozidas, misturadas ao sangue do Guerreiro Goitacá.

Ao amanhecer todos dormiam; cachorros latiam ao longe, quebrando o silêncio, as vozes da floresta, que na verdade nunca silenciam totalmente, voltavam a ser ouvidas com intensidade e, no centro da ocara, como símbolo da crença atávica, o colar de dentes de tubarão, que mal pertencera ao herói desta história, mas que ficaria para a posteridade como um aviso de que ali moravam índios Tupinambá, comedores do comedor de tubarões. Todavia, aquela tranquilidade duraria pouco, pois estava sendo preparada, pelos inimigos . . .

A guerra dos Matadores de Tubarões contra todos os povos!

 

CONCLUSÃO I

A Europa Culpada

Apresento-vos uma visão tupinocêntrica, em contraposição ao eurocentrismo de sempre. Em primeiro lugar, os selvagens são assim chamados porque eram os habitantes das selvas e não porque comiam carne humana, senão todos seríamos selvagens, pois o canibalismo foi praticado no continente europeu até a Segunda Grande Guerra (1945) e, pelo que soubemos, aqui perto, na Cordilheira dos Andes, há poucos anos atrás. Os Goitacá também comiam carne humana para matar a fome, e a visão paradisíaca que temos das selvas, não garantia a eles a quantidade necessária de alimentos vegetais e animais. Não podemos julgá-los com os olhos de nossa cultura, assim como não podemos julgar os últimos europeus canibais pelos seus motivos. O que se faz aqui é apenas destacar o fato, desfazendo o mito. A grande nação Tupi, por seu turno, além de alimentar-se, proporcionava ao devorado uma sensação parecidíssima com a de um viking passando pelas portas de Valhala, e, ao invés do que fez Jacó, subindo a longa escada até o ponto no alto, fulgurante, todo luz magnífica e adentrar o Grande Salão, passando entre duas gigantescas estátuas de guerreiros indígenas, todo rocha, todo minério, todo pedra! Até aqui todos somos culpados e inocentes. Contudo, uma culpa longeva persiste! Assim como os Charrua dos Pampas, a nação Goitacá não se dobrou aos inimigos, tampouco aos barbudos e fedorentos europeus. Impotentes, os invasores ditos civilizados, utilizaram armas químicas contra os Goitacá, exterminado a brava e indômita nação indígena. Todos os historiadores e pesquisadores sérios conhecem a História do Brasil, principalmente a parte que não é valorizada, que passa despercebida pelos desapercebidos de plantão.

 

CONCLUSÃO II

O Brasil Culpado

Do paraíso selvagem da indômita nação dos matadores de tubarões, nada restou. Na verdade, boatos dizem que o colar de dentes de tubarão ainda existe, se tivermos tempo, vamos procurá-lo. Parece que também restou uma estátua numa praça da cidade de Campos dos Goytacazes, aquela banhada pela Lagoa Feia. A estátua caiu e foi jogada no quintal de uma Secretaria Municipal? I-na-cre-di-tá-vel! Esperemos que a Prefeitura tenha feito o devido restauro. Se alguém souber de alguma coisa, favor avisar . . .

Entrementes, nossa culpa não é essa. É muito mais grave, com consequências nefastas para nós mesmos, o povo brasileiro, cuja gravidade, infelizmente, a maioria sequer imagina. Não lembro o nome do professor, mas alguém lecionou que “abrimos mão da exuberância em troca da paisagem . . . do espaço”. Os nossos irmãos selvagens foram assassinados covardemente pelos europeus, no caso dos Goitacá, com o vírus da varíola, uma moda que, se pega, põe a humanidade à beira do extermínio e dá todo o poder para um único povo. Infelizmente, nada podemos fazer quanto aos Goitacá. Contudo, meus caros leitores, se tendes siso, concordareis comigo: o bioma chamado Mata Atlântica, a flora que o estrutura e compõe, a fauna que o enriquece e permite crescer, por exemplo quando a paca come o fruto do jatobá e leva sua semente longe para germinar, jatobá de cujas flores dependem os morcegos, que se alimentam do pólen, a maior biodiversidade da Terra, enfim, o maior conjunto de fitofisionomias, a terra dos muriquis, das panteras, o bosque das 20 mil espécies de árvores, o maior conjunto de angiospermas, o bioma top do planeta Terra, este sim, era e é de nossa inteira responsabilidade e nós somos os culpados por sua cataclísmica devastação.

 

Fim, até que chegue a guerra nas selvas do Brasil . . .

 

[1] Segundo Eduardo Bueno, no início da Era Cristã, portanto há dois mil anos, levando vários séculos nesta dantesca jornada até chegar no litoral atlântico.

[2] Na história da humanidade, pesa sobre a Europa o uso de armas biológicas no Novo Mundo. Na história contemporânea, do mundo globalizado, parece que existem outros candidatos à execrável condição de inimigos da Humanidade. A esses resta apenas duas possibilidades: dominarão o mundo, e então nós seremos os escravos, ou serão severamente responsabilizados por seus crimes de guerra, aliás, não declarada. Em caso de responsabilização, terão inveja da flexibilidade do Tribunal de Nuremberg, porque pelo menos os famigerados nazistas utilizavam canhões e tanques de guerra e estes nos atacam com o invisível. 

[3] A conhecida Lachesis muta, cuja textura das escamas, que formam sua pele, lembra a casca de uma jaca.

[4] Lembrando que os sambaquianos eram os brasileiros antigos, cuja presença no litoral era bem anterior aos chamados “índios”, Tapuia ou Tupi.

[5] Interpretado pelo ator Rudy Youngblood.

[6] Hans Staden ficou rico vendendo livros e palestras na Europa sobre o tema. Aliás, com todo o direito, pois por pouco não fora o personagem principal de um grande banquete Tupi.

[7] Bactris setosa. Pesquise! Uma palmeira completa: os frutos são saborosos, das sementes é extraído um óleo comestível, das folhas são feitas fibras fortes e úteis, o caule oferece o palmito, muito utilizado em diversas culinárias, e os espinhos são utilizados como ornamento ou para confecção de pentes utilizados pelos indígenas para fazer sangria no próprio corpo.

[8] Mata Atlântica

[9] O Brasil possui cerca de 20% das angiospermas do mundo. A Mata Atlântica possui um terço das árvores com sementes dentro de frutas do Brasil. 

[10] E comiam gente!

[11] Myrciaria trunciflora. Iapoti-kaba (frutas em botão) para os índios da grande nação Tupi.

[12] Procnias nudicollis, o pássaro ferreiro das florestas. Seu canto lembra duas roldadas de ferro rangendo com o movimento.

[13] Eunectes murinus, também conhecida como sucuri-verde.

[14] Pré-histórica arma indígena cilíndrica e alongada, também chamada de borduna ou tacape. Uma clava, pesada, feita de madeira dura, que feria, muitas vezes mortalmente, pelo impacto direto.   

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