“Amélia”, de Salustiano de Souza
AMÉLIA
Não vou cair nessa de falar que Amélia que era mulher de verdade, até por que isso está muito batido, muito repisado. Na verdade Amélia era uma escrava. No sentido mais literal da palavra. Ganhara-a na troca com o cara da noite, naquelas coisas inexplicáveis que só acontecem nos quadrinhos.
Calma, eu explico: Eu dirigia devagar depois da meia noite, tinha pego o carro do papai escondido e tomado uns tragos na festa e estava louco para chegar, morrendo de medo que a polícia me pegasse no teste alcoólico. Não estava bêbado, vocês podem até rir, mas juro que não estava, até porque não sou muito resistente à bebidas, não posso misturar com os remédios e a dor de cabeça aparece no outro dia. Já aprendi a lição.
De repente uma coisa muito louca, tudo parou. Parece estranho, mas a sensação que tive é que o mundo realmente parou. Ficou tudo escuro, o carro morreu, não se via nada pela frente. Fiquei apavorado, tentei fazer o carro pegar, girava a chave na partida, mas nada acontecia, nenhum sinal. Estranho mesmo.
Antes havia um pouco de neblina que agora virara uma manta negra. Uns pingos de chuva começaram a cair e logo percebi que era uma água negra, como uma lama pegajosa que grudava no para-brisa. Percebi uma claridade e tomei um baita susto, na janela do carro uma figura muito estranha esquadrinhava o interior com uma lanterna de luz parecida com roxo. Digo parecida porque era uma luz que tomava várias cores, se alternando nos nuances entre azul e vermelho. Eu queria gritar, mas a voz não saía, era como se estivesse no meio de um pesadelo, mas sabia que estava acordado, bem acordado.
Seu rosto, se é que podia chamar aquilo de rosto, não tinha nenhum relevo, não havia boca ou nariz ou olhos, era liso, parecia um desses bonecos de isopor de mostruário, que só tem a cabeça, sem qualquer detalhe, mas ele parecia sorrir, mesmo sem ter boca parecia sorrir. Senti que ele estava me tranquilizando. Uma música tocava ao fundo, não era no meu carro porque ele estava completamente desligado, era uma música linda, cadenciada, divina até, eu fiquei muito tranquilo, parecia que tinha tomado um tranquilizante forte, tipo rivotril ou lexotan, desses que a gente toma escondido do médico.
Então ele falou comigo, mas não falava nossa língua, falava para dentro do cérebro, era tipo um roteador que se conectava direto, um aplicativo wi-fi que lê as mentes e não se pode mentir para ele. Falou-me que estava procurando Raul, que havia nascido há dez mil anos atrás, ele queria saber tudo o que Raul sabia. Falei que eu sabia tudo o que Raul sabia e até um pouco mais, porque eu escutava os discos do Raul desde o tempo que eram de vinil, época em que se aprendia mais porque a rotação do vinil era mais lenta que o CD de hoje em dia. Falei mais ainda, que hoje as músicas eram todas mp3 e que em um pendrive cabia milhares delas. Fi-lo perceber que no tempo do vinil eram no máximo doze músicas, seis de cada lado. Eram músicas que calavam fundo na alma porque as pessoas ouviam com o coração. Hoje, com essa massificação, as músicas perderam a essência. Ele percebeu que eu estava falando com muita propriedade e resolveu escanear minha mente para extrair todas essas coisas.
Eu não contei, mas tudo isso acontecia com o carro fechado, ele estava do lado de fora e eu sentado, morrendo de medo, com as mãos agarradas firmes no volante, como se isso adiantasse. Ele perguntou se eu deixaria escanear meu cérebro e eu, que já trabalhei alguns meses de vendedor antes de ser aposentado pelo psiquiatra, não perdi tempo, perguntei quanto ele me pagaria.
Ele pareceu muito intrigado e quis saber o que poderia ser o pagamento, pois ele nem sabia que existia dinheiro. Falei que poderia dar algo que fosse dele, alguma coisa de que gostasse, que fosse valiosa, ele falou que não tinha nada, mas que talvez pudesse me dar como escrava uma das serviçais do reparo, eu falei que tudo bem, aquilo era estranho mesmo, então uma proposta assim estranha nem parecia ser tão estranha.
Ele disse que não poderia mostrá-la na forma natural porque eu iria me assustar, então era para pensar em alguém que pudesse cuidar de mim, pensei logo em Amélia, a mulher que me pegava no colo e enxugava as lágrimas de mamãe, afirmando que eu era uma criança normal. Ele falou que eu iria adormecer e não vi mais nada, a chuva de lama parecia ter acabado como milagre, sacudi a cabeça e me vi no acostamento da rodovia, metade do carro no mato, com marcas de derrapagem, achei estranho porque quando tudo tinha parado eu estava no meio da rodovia.
“Oi”, ela falou, era Amélia, a empregada, no banco ao lado. Afagou meus cabelos e sorriu, abracei-a com o mesmo carinho que a abraçava quando criança, ela sorriu novamente. “Vamos para casa” falou ternamente. Dei a partida e o carro pegou normalmente.
“Vou preparar um banho”, falou, mal chegamos e já estava enchendo a banheira. Tirou minha roupa e me ensaboou, massageando levemente meu corpo dolorido. Tomou a toalha e me enxugou docemente. “Venha”, e me levou para a cama. Aconchegou o cobertor, me deu um beijo e fez cafuné. Logo dormi, pois não resisti ao seu cantarolar suave enquanto suas mãos alisavam meus cabelos.
Acordei quando já passava das oito e com aquele cheirinho tentador de bolinho de banana. Relembrei meu tempo de criança, ela sorriu e me serviu o café. Depois, levou-me para trocar de roupa, lembrando-me do psiquiatra às dez.
Dali por diante ela estava sempre pronta para mim, tudo o que eu queria ela parecia imaginar antes, parecia adivinhar as comidas que eu mais gostava, as roupas que eu apreciava, parecia ler meus pensamentos. Mas o que eu mais adorava era quando chegava a hora de ir para a cama, quando me ajudava no banho, massageava meu corpo e me cobria com o cobertor macio. Ficava me olhando com olhos ternos e fazia cafuné. Ela literalmente foi um achado do céu.
No entanto, duas coisas começaram a me intrigar: Ela tinha olhos e sorriso da minha mãe e estava sempre com os olhos marejados, parecendo me olhar com tristeza. Eu ficava olhando seu belo rosto enquanto ela alisava meus cabelos, ela cantarolava baixinho enquanto seus olhos iam se enchendo de lágrimas. Quando percebia que eu estava atento ela disfarçava e sorria, o mesmo sorriso meigo de minha mãe. Não entendia direito, era algo confuso.
Comecei a perceber que ela não era feliz, apesar de fazer de tudo para eu ser feliz. Talvez o fato de ser de outro lugar, algo diferente daqui, não sei, percebia que ela fazia de tudo para me agradar, me deixar satisfeito, parecia adivinhar minhas preferências, mas aqueles olhos sempre úmidos de tristeza me deixavam triste também. E seu sorriso igual ao de mamãe me intrigava. Comecei a perceber que ela sofria ao meu lado, talvez fosse saudade dos seus. Como eu a adorava, não achando justo deixa-la sofrer, comecei a arquitetar um plano para livrá-la desse sofrimento.
Como era escrava era só libertá-la, diriam vocês, mas a coisa não é tão simples assim. Sim, porque estamos esquecendo que ela veio de outro lugar, não está acostumada conosco. Imagine deixá-la andar sozinha nesse mundo maluco. Certamente ia se perder, talvez fosse sequestrada, ou alguém poderia lhe fazer mal. Realmente não tinha como libertá-la. Comecei a analisar todas as possibilidades e a verdade se abateu sobre mim de forma aterradora: a única forma de libertá-la da tristeza seria matando-a.
No começo não aceitava essa ideia, mas aos poucos comecei a perceber que era a única saída. Contemplava seus olhos tristes me fitando com ternura, sempre cheios de lágrimas, mas por dentro eu sorria. Já tinha meu plano, iria libertá-la dessa tristeza, era só questão de tempo. Consegui um punhal afiado, bem fino para não causar sofrimento. Seria um golpe só, bem certeiro no coração. Ela não ia sentir nenhuma dor.
Tinha dúvidas se ela iria para o mesmo céu que nós vamos, porque até hoje ninguém parou para pensar sobre isso, ainda não existe filiais das igrejas fora daqui, mas isso é só uma questão de tempo, é provável que logo comecem a ter igrejas em todos os cantos. De qualquer forma acredito que ela iria me agradecer de onde estivesse, por tê-la libertado desse sofrimento todo.
Chegou o dia, ou melhor, a noite. Sentia que hoje era a libertação. Enquanto ela afagava meus cabelos com os olhos úmidos eu apanhei o punhal debaixo do travesseiro e o ergui bem acima dela. Demorei um pouquinho, mostrando o brilho da lâmina, para ela perceber que iria se tornar liberta. Talvez ela me sorrisse agradecida, ou talvez oferecesse seu corpo para ser sacrificado.
Mas ela deu um grito desesperado, correu para o canto do quarto e com o terror estampado no rosto gritava: “por que, meu filho, por quê?”. Eu caminhei lentamente em sua direção, empunhando o punhal, enquanto lhe explicava: “irei libertá-la, você voltará para os seus”, mas ela se espremia no canto enquanto gritava desesperada. Agora, mais do que nunca, seu rosto aterrorizado se parecia com o de mamãe.
Nisso meu pai entrou, segurou meu pulso com força, fazendo o punhal cair. Amélia correu para fora do quarto, meu pai me sacudia, perguntando o que eu queria fazer, e eu, chorando, só repetia: “Queria libertá-la, queria libertá-la”.
Vocês podem achar que isso aconteceu muito rápido, mas na realidade foi bem devagar, como se em câmera lenta, parecia um filme. Então aconteceu algo estranho, como num passe de mágica eles voltaram. Vieram com roupas brancas, com aquelas caras de mostruário, colocaram uma roupa branca em mim, uma túnica comprida, com mangas bem compridas, dessas que envolvem o corpo. “Você não precisará mais de braços”, senti um deles sussurrando no meu cérebro. Conduziram-me para a nave cujas luzes piscavam na noite, irradiando no gramado aquela cor parecida com roxo. Na escadaria da casa meu pai abraçava Amélia, ela fazia gestos para eles, como se estivesse suplicando para vir junto comigo, mas parecia que eles não queriam levá-la de volta, ela escondia o rosto no ombro de meu pai e chorava.
Aos poucos a casa e seus vultos foram ficando para trás, eu estava agora no meio deles com os cérebros conectados. Começamos a negociar como seria minha vida nesse mundo tão diferente, até porque eu tinha dúvidas se iria me acostumar, era algo muito estranho. O que eu mais sentia era que não podia ficar longe de Amélia, então decidimos que toda semana eles enviariam a nave para buscá-la, mas não poderíamos nos tocar, só poderíamos nos ver de longe, através de um vidro. Estou desconfiado que ela tenha alguma bactéria.
Ela sempre vem, às vezes junto com meu pai. Fica me olhando longamente, com seu sorriso triste e olhos meigos, sempre cheios de lágrimas. Isso me deixa muito triste, mas estou negociando com eles uma forma da gente libertá-la. É só uma questão de tempo.
Salustiano Souza
Setembro/2018