📘 “O dia que em que eu conversei com o Dalai Lama” (Vieira)
O dia em que eu conversei com o Dalai Lama
A bandeira do Tibete, diante do Palácio do Itamarati, saudava a presença do Dalai Lama, chefe de Estado, enquanto a grande Bandeira Nacional, hasteada na praça dos Três Poderes, tremulava sob o céu azul de Brasília. Olhando de longe nosso “lindo pendão da esperança”, lembrei-me especialmente de meu pai, por seu respeito aos símbolos da pátria. Simples trabalhador por toda a vida, como tantos brasileiros, que serviu com afinco e resignação para manter a família e alavancar a carreira dos filhos, sem dúvida sentiria, se vivo estivesse, mesmo de longe, a emoção que me tomava o corpo e a mente, pela oportunidade e pela responsabilidade que ensejava aquele momento.
Foi um encontro privado, na sala do presidente da Câmara dos Deputados. Enquanto um batalhão de fotógrafos e jornalistas ocupava a antessala, o Dalai Lama, seu secretário e o intérprete oficial foram conduzidos pelo presidente até um sofá, que encarava meia dúzia de cadeiras dispostas em semicírculo numa das laterais da ampla sala de reuniões da Presidência. Nós, deputados escolhidos pelos seus respectivos partidos para a recepção, aguardamos enfileirados em pé, o sinal do presidente para tomar assento.
Sentamos. O presidente fez a saudação de boas-vindas, e, logo após a tradução do intérprete, com um sorriso afável e uma aura de paz e serenidade, o Lama expressou a sua satisfação de estar com os representantes “eleitos democraticamente pelo povo brasileiro”, como fez questão de frisar. Ele também agradeceu o convite para a palestra que iria proferir logo em seguida, no nobre Salão Negro da Câmara.
Então veio o momento que todos esperávamos, quando cada um poderia perguntar ou transmitir algo ao líder político-religioso.
Estava ali, diante de nós, um homem especial. Prêmio Nobel da Paz, reconhecido mundialmente não só pela sua determinação incansável em promover a libertação pacífica de seu país, mas também pelo grande conteúdo e sabedoria de suas palavras. Segundo a tradição do Tibete, ele é a reencarnação do príncipe Chenrezig, o Avalokitesvara, o portador do lótus branco, que representa a compaixão, grande mensageiro da paz mundial ou mais simplesmente, como ele mesmo repete sempre, “apenas um ser humano comum”.
Naquele instante, vieram-me a mente líderes que fizeram e fazem a diferença, que deram e dão ao mundo contribuições inestimáveis para que nos tornemos mais humanos, mais justos e mais felizes, muitos ilustres desconhecidos, outros ícones venerados como Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Madre Teresa e Martin Luther King.
Mahatma, em sânscrito, significa “grande alma”, um título apropriado para Mohandas Karamchand Gandhi, que se tornou um dos grandes ícones da paz mundial por defender o princípio da não violência como forma de protesto e assim obter a libertação e a fundação do moderno Estado indiano.
Conta-se que um fato marcou sua trajetória política: no início de sua carreira de advogado, na África do Sul, Gandhi viajava num trem, na primeira classe, quando solicitaram que ele se transferisse para a terceira classe, por não ser branco. Ele se recusou, e foi jogado para fora do trem. O episódio fez com que ele começasse a advogar contra as leis discriminatórias vigentes. Gandhi acabou permanecendo vinte anos na África do Sul defendendo a minoria hindu, liderando a luta de seu povo pelos seus direitos. Foi na prisão que descobriu a desobediência civil, lendo Thoreau e as obras de Tolstói, e começou a perceber, cada vez mais, as possibilidades infinitas do “amor universal”.
Retornando à Índia, logo se destacou no Congresso Nacional, participando do movimento pela independência, e obteve a atenção internacional quando utilizou a não violência e o jejum como forma de protesto. Suas ações renderam-lhe terríveis pressões, momentos de grande tensão e várias prisões: o boicote aos produtos importados, especialmente aos têxteis britânicos, fazendo do tear manual que produzia as vestimentas populares o símbolo de afirmação nacional (tanto que foi incorporado à bandeira indiana); a Marcha do Sal, que durante quase um mês levou milhares de pessoas ao mar, a fim de coletarem o próprio sal, em vez de pagar a taxa prevista sobre o sal comprado; sua firmeza pró-independência, mesmo após o massacre de Amritsar, em 1920, quando os soldados britânicos mataram centenas de indianos que protestavam pacificamente contra as medidas autoritárias do governo britânico.
“A não violência é o artigo número um de minha fé e é também o último artigo do meu credo”, dizia. O filme Gandhi, dirigido por Richard Attenborough, premiado com oito estatuetas do Oscar, incluindo os prêmios de melhor filme e melhor ator (para Ben Kingsley), retrata muito bem a visão do Mahatma de que o mundo contemporâneo caminha para um óbvio — amor ou destruição —, mas também sua esperança numa sociedade nova, desde que a humanidade alcançasse antes uma renovação interior. Gandhi estava também convencido de que um único homem, com o tempo, pode mudar o mundo.
Outro advogado, Nelson Mandela, mudou o mundo para melhor ao assumir escancaradamente a oposição à segregação e aos preconceitos raciais implantados pelo regime do apartheid em seu país, a África do Sul, no fim da década de 1940.
O que me impressiona é outra vez a resistência, a determinação, a coragem, a persistência: 28 anos na prisão não mudaram seu caráter e não minaram sua têmpera nem a vontade de continuar a luta pela paz. Mesmo na cadeia, tornou-se símbolo de todas as campanhas dos grupos contrários ao apartheid de todo o mundo, e de todas as partes do planeta ouvia-se o clamor: “Libertem Nelson Mandela!”.
Ele foi libertado em 1990 pelo presidente Frederik W. de Klerk, com quem dividiu o Prêmio Nobel da Paz de 1993. Mandela tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul, comandando a transição do regime de minoria no comando, o apartheid, para a amplitude democrática do país.
Quando fui a Joanesburgo, em 2000, visitei com emoção a casa onde morou Nelson Mandela, no antigo gueto Soweto (South West Township), hoje uma grande cidade. O local foi uma das diversas townships sul-africanas — áreas de segregação racial e de grande pobreza, que mantinham os negros longe dos olhos dos brancos. Sua antiga casa virou museu e pode ser visitada. (A casa de outro baluarte da luta contra o preconceito racial, o bispo Desmond Tutu, também fica em Soweto.)
Mas agora eu estava na presença do próprio Dalai Lama, que sintetizava todas essas experiências e todo o cabedal de sabedoria que trazem consigo.
Chegada a minha vez de falar, com emoção fiz o sinal de mãos postas e cumprimentei:
— “Tashi delê”, respondido com um sorriso pelo Lama, e perguntei:
— Temos grande admiração pela sua luta, pela luta do seu povo e pela pregação de Vossa Santidade. Em suas tantas viagens pelo mundo, o que mais lhe impressionou em tantos países, contatos e pessoas que encontrou?
A resposta foi precisa:
— De tudo que vi e ouvi, percebi que, em todos os lugares ou situações e em todas as nações que visitei, somos os mesmos seres humanos, sempre, e todos queremos ser felizes.
Essas palavras, uma constatação tão simples, como são as grandes verdades, continuarão sempre muito presentes para mim, reafirmadas em seu livro Uma ética para o novo milênio:
Quanto mais coisas vejo no mundo, mais claro fica para mim que, não importa qual seja a nossa situação, sejamos ricos ou pobres, instruídos ou não, qualquer que seja a nossa raça, sexo ou religião, todos desejamos ser felizes e evitar os sofrimentos. Cada uma de nossas ações conscientes e, de certa forma, toda a nossa vida — como escolhemos vivê-la dentro do contexto das limitações que as circunstâncias nos impõem — podem ser vistas como respostas à grande pergunta que desafia a todos: “Como posso ser feliz?” […]
Temos a esperança de, por meio de tal ou tal ação, conseguir obter felicidade. Tudo o que fazemos, não só como indivíduos mas também como sociedade, pode ser visto em termos dessa aspiração fundamental. Na verdade, é uma aspiração comum a todos os seres sensíveis. O desejo ou inclinação para ser feliz e evitar os sofrimentos não conhece fronteiras. Faz parte da nossa natureza. Como tal, não necessita de justificativa e é legitimado pelo simples fato de ser o que nós natural e corretamente queremos.[1]
Além de identificar a universalidade desse desejo humano, entendo que nesse texto são explicitados dois pontos importantes. Primeiro, que se trata de uma aspiração natural e fundamental do ser humano; segundo, que a busca da felicidade se transporta para a coletividade.
Na visão do ilustre Lama,
Estranhamente, minha impressão é que aquelas que vivem em países de grande desenvolvimento material, apesar de toda a sua atividade e diligência, são de certa forma menos satisfeitas, menos felizes e, até certo ponto, sofrem mais do que as que vivem em países menos desenvolvidos. Se compararmos os ricos com os pobres, muitas vezes parece que aqueles que têm quase nada são menos ansiosos, apesar de atormentados por sofrimentos físicos. Quanto aos ricos, alguns poucos sabem como usar sua riqueza de modo inteligente -ou seja, compartilhando-a com os necessitados, e não em uma vida de luxos […]
Este paradoxo — o fato de encontrarmos com tanta frequência sofrimento interior, psicológico ou emocional, em meio à riqueza material — é algo que logo se percebe em grande parte do Ocidente.[2]
Receber o Dalai Lama, na Câmara Federal do nosso País foi uma grande honra e um momento especialíssimo para mim. Sem dúvida uma das conversas que me fez me perguntar como engenheiro de planejamento urbano, como administrador público e como pessoa, que premissas devemos adotar para conduzir sua comunidade a uma vida mais feliz e completa? O que é possível fazer para que o as pessoas encontrem a felicidade e se sintam realizadas como cidadãos?
Sem dúvida foi um impulso importante para que eu fizesse uma imersão no tema que culminou com a edição do meu livro Felicidade Sustentável.
“Tashi delê”. Embora não haja uma tradução literal, mas é um cumprimento no Tibete. Se você disser “tashi delê” para as pessoas você receberá sempre sorrisos sinceros em troca.
[1] Gyatso, Tenzin. Uma ética para o novo milênio. Tradução por Maria Luiza Newlands. 4. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 1999, p. 13-4.
[2] Idem, p. 14, 17.