Os funcionalistas e a inteligência artificial (Fiuza)

 

Os funcionalistas e a inteligência artificial

(Extraído do livro “A consciência, uma viagem pelo cérebro”, de Ronald Fiuza)

 

No fim do século XIX já começavam a se fortalecer as diversas formas de materialismo. Crescia a convicção de que, no fim das contas, o mundo é mesmo físico. O objetivo era entender o funcionamento das coisas considerando a sua obediência às leis da física, química e biologia. As atividades mentais também deveriam ser compreendidas somente por meio de mecanismos físicos. Em outras palavras, deveriam ser “reduzidas” a estes.

Tampouco entre os materialistas houve acordo, resultando no surgimento de outras escolas de pensamento. Uma das mais estranhas avaliou a atividade mental como um atributo irrelevante, considerando o comportamento como o único fato interessante ao cientista, já que é tudo que ele pode observar. Outros encararam o estado mental como um processo, independente da estrutura atrelada. Há ainda aqueles que enxergaram os estados mentais como idênticos a estados do cérebro. Nestes casos é que o termo “redução” se aplicaria. É quando a explicação de um fenômeno se faz pela análise de suas partes, utilizando-se, para isto, conceitos de outro domínio do conhecimento. O dualismo perdia rapidamente terreno. A maioria dos filósofos e cientistas passou a adotar alguma forma de materialismo.

Os filósofos nesta época já haviam perdido o monopólio do debate. Na Europa, surgiu a psicologia, braço da ciência dedicado ao estudo das atividades mentais e do comportamento. O alemão Wilhelm Wundt fez medições da duração de processos psicológicos, criando a chamada psicologia fisiológica.  O austríaco Sigmund Freud descreveu o inconsciente, bem como sua importância na fisiologia e na patologia psíquica humana. Tirou o cetro da consciência (Freud, 1899). Na América, destacou-se William James, que descreveu a consciência como um fluxo de pensamentos, potencializado pelo poder da atenção.

Enquanto a psicanálise dominava a cena na Europa Continental e América Latina, surgiu forte movimento contra o método introspectivo na América do Norte e Grã-Bretanha. Watson e Skinner sugeriram que o estudo da mente deveria se restringir à análise do comportamento. Afinal, só este pode ser efetivamente observado. Fundou-se então o behaviorismo e, com ele, a psicologia comportamental. De acordo com esta escola, devem ser valorizados apenas o estímulo e sua resposta. O comportamento é a manifestação desta resposta e representa a grande fonte de informações. Não há sentido especular sobre o que está entre o estímulo e a resposta. Aí se encontra apenas uma caixa preta, absolutamente inescrutável (Skinner, 1974). Posteriormente vários autores behavioristas tornaram estes conceitos mais flexíveis. Admitiram cognições, mas consideraram-nas um tipo de comportamento.

O behaviorismo dominou a psicologia em boa parte do século, principalmente nos países de língua inglesa.  Teve força à medida que seus princípios coadunavam com os princípios gerais da ciência de então, desconsiderando tudo que não podia ser observado.

Entretanto, era profundamente contra intuitivo, ao negar a importância de processos mentais subjetivos, tão evidentes e tão caros a todos nós. Considerava ainda o cérebro como máquina passiva, sempre à espera de estímulo do meio para poder responder. Sabemos que nosso cérebro não é mero coadjuvante, mas que pode ser protagonista, iniciar ações.

A resposta ao behaviorismo veio com o funcionalismo, originário dos conceitos de William James. Este grande psicólogo concordou com a importância do papel do estímulo e da resposta, mas indicou a existência de processos intermediários. Ele concebeu assim a noção de que “o espírito é um processo” (James, 1890). Na avaliação mental, ou seja, destes processos, o importante é observar as funções da mente e não as suas estruturas. O estado mental passou a ser considerado um “portador de informação”, encontrado entre inputs do meio e outputs comportamentais. A ideia é que, se nos interessa medir o tempo, não importa se isto é feito por relógio ou ampulheta. Da mesma forma, se a função em pauta for processar informações do meio ambiente, não importa se for feita por cérebro humano ou por computador (Putnam,1973).

Atrás da concepção funcionalista deslanchou a chamada revolução cognitiva, um mutirão multidisciplinar que inovou os métodos e conceitos utilizados nos estudos das funções mentais. A mente passou a ser vista como um sistema de processamento de informações e o cérebro como um mecanismo complexo de circuitos em paralelo. A consciência tornou-se assim o resultado de computações (Gardner, 1987). Nesta linha têm sido construídos modelos experimentais, capazes de simular diversas funções cerebrais. É uma estratégia diferente.  Primeiro se concebe um modelo computadorizado. Se funcionar bem, procura-se uma estrutura no cérebro que funcione de maneira semelhante.

Um bom exemplo foi dado por um grupo de Paris, que procurou construir em computador algo parecido com a consciência. Este grupo criou modelo de redes neurais simulando processos cerebrais, no qual módulos cognitivos (para percepção, movimento, memória e valorização) foram conectados a um espaço central constituído de neurônios artificiais fortemente acoplados. Inicialmente o sistema era treinado em tarefas rotineiras. Após este treinamento, os circuitos eram ativados em tarefas mais difíceis, para as quais os módulos periféricos eram insuficientes. A rede neural procurava (sem supervisão) o módulo central, buscando auxílio.  Testes semelhantes foram aplicados posteriormente em humanos, acompanhando a resposta cerebral em exames de neuroimagem. A experiência anterior com as redes neurais permitiu predizer padrões espaciotemporais em áreas específicas do cérebro, confirmando o modelo (Dehane, Kerszberg, & Changeux, 2001).

Seguindo esta linha, outros pesquisadores conceberam ideias interessantes para o entendimento do funcionamento mental. O cientista cognitivo Bernard Baars, por exemplo, considerou a consciência como uma espécie de área de trabalho, uma zona de convergência para onde as informações confluiriam (Baars, Newman, & Taylor, 1998). É um modelo didático, facilmente compreendido por quem usa computador.

O filósofo Daniel Dennett imaginou um funcionamento cerebral em múltiplas camadas, com ligações em série se ajustando sobre ligações em paralelo (Dennett, 1998). Esta é uma imagem interessante, compatível com uma consciência unificada, processada em paralelo, que serviria de base para processamentos sequenciais, em série, como fluxos de pensamento.

Funcionalistas mais radicais preconizaram potencialidade quase ilimitada para a inteligência artificial, que apelidaram de “IA”. Imaginaram que, quando desenvolvida, a IA poderia se identificar com a atividade mental. Batizaram-na com o significativo nome de “IA forte”. Alguns chegaram a considerar a mente como um software e o cérebro como um hardware. Por outro, lado os mais moderados defendem apenas a “IA fraca”, compreendendo que o computador é somente um método auxiliar na avaliação dos fenômenos mentais (Chalmers, 1996).

Começaram, entretanto, a surgir ponderações contra este funcionalismo. O filósofo John Searle argumentou que a atividade de um computador não pode jamais ser comparada com a mente.  Enquanto a máquina só manipula símbolos (sintaxe), a mente, além dos símbolos, lida com significados (semântica). O computador só recebe uma sequência de “zeros” e “uns”, os submete a um programa e os recombina. A interpretação dos mecanismos sintáticos desenvolvidos no computador não é feita pela própria máquina, mas pelo homem que a manuseia, ou seja, o programador ou o usuário. Estes, sim, sabem o significado dos símbolos ou das palavras (Searle, 1997). O segundo grande argumento contra o funcionalismo é que ele não pode explicar as experiências conscientes (qualia).  Um robô sofisticado poderia cumprir determinada função de maneira idêntica a um homem, mas isto não quer dizer que ele teria sensações iguais às do homem (Block, 1978).

O físico inglês Roger Penrose utilizou argumentos matemáticos para desqualificar o modelo funcional da mente.  A sua tese é que processos mentais não são computáveis. Sua demonstração é baseada no conhecido teorema de Gödel, que indica a existência das chamadas proposições indecidíveis. Este teorema enuncia que, em sistemas matemáticos, há afirmações verdadeiras que não podem jamais ser provadas dentro dos próprios sistemas. Um bom exemplo é o problema da parada. Se pedirmos a um computador que encontre um número maior que 8, ele logo para em 9. Por outro lado, se pedirmos que encontre um número ímpar que seja igual à soma de dois pares, o computador não para nunca. É uma proposta indecidível, que o computador não consegue resolver. A mente, por outro lado, resolve.  Nós sabemos que este número não existe. Sabemos isto por intuição. Nosso conhecimento a este respeito não é algorítmico. Daí se conclui que a mente funciona de outra maneira, não é computável. Penrose deduz que seu argumento refuta não só a IA forte, mas também a IA fraca (Penrose, 1989).

Todas estas marchas e contramarchas relativas à questão corpo-mente só nos ilustram a precariedade dos métodos disponíveis para nos encaminhar para a solução do problema. O homem vinha buscando o entendimento da consciência por meio da introspecção, do raciocínio lógico e da observação do comportamento. Parecia definitivamente insuficiente.

 

(Do livro “Conversas sérias e outras nem tanto… .” Crônicas e Ensaios).

 

 

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