A aventura dos acomodados (Hilton Görresen)

 

A AVENTURA DOS ACOMODADOS

Hilton Görresen

 

Todas as noites vamos dormir com uma grande incerteza: que será que nos vai acontecer durante o sono? Vamos ser devorados pelo enorme dragão? Vamos nos quedar sozinhos e nus diante do mundo? Vamos conseguir atravessar o precipício que encontramos pela frente? Vamos ser interrompidos pela tia castradora no momento em que conseguimos finalmente conquistar a bela jovem? Vamos conseguir escapar dos bandidos que nos perseguem com arma nas mãos?

Sim, o sonho pode ser uma aventura. Por isso é que costumo denominá-lo de “aventura dos acomodados”. É quando saímos de nosso casco protetor, do reino das certezas, do possível, para entrar na zona negra do desconhecido, do improvável, que tanto nos pode ser agradável como desesperadora.

E o que é o sonho? Fuga do espírito, que se desprende do corpo para um passeio noturno por mundos extraordinários? Explosão do inconsciente? Manifestação dos medos e ansiedades da alma? Premonição do futuro? Retomada de pequenos incidentes diários que nos passaram despercebidos?

O sonho é realidade no mundo mental, esse mundo em que se misturam as ficções, as lendas, os mitos, as crenças e as lembranças. Muitas vezes não temos certeza se algum fato foi acontecido ou sonhado.

Meus sonhos são recorrentes, repetitivos. No mundo dos sonhos ainda estou em São Chico, de onde migrei há mais de 40 anos. Moro no antigo casarão da família, enfrentando seus problemas degenerativos atuais, como um reflexo do presente nesse mundo que aboliu o tempo, que misturou as épocas, que integra mortos e vivos, saudades e expectativas. O mundo dos sonhos é atemporal, não segue regras ou hierarquia dos acontecimentos, tudo se presentifica.

São sonhos de frustração, de exclusão, não consigo terminar tarefas, chegar aos lugares a que me dirijo, não encontro as coisas que procuro. Meu carro nunca está onde o estacionei. Não sou o protagonista de meus sonhos. Acordo frustrado, fico minutos a cismar, a repassar as cenas às vezes dolorosas da noite. Fica a dúvida: serão os sonhos reflexo de nossa realidade, ou será a realidade reflexo de nossos sonhos? Meus sonhos influenciam o que sou, ou o que sou se reflete em meus sonhos?

É por isso que aguardo com ansiedade o dia em que poderemos escolher numa “sonholocadora” o tipo de sonho que desejarmos; então poderemos figurar de heróis, líderes políticos, realizar grandes feitos para a humanidade, ou simplesmente conquistar belas garotas (sem a interrupção da tia castradora).

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL A GAZETA DE SBS EM 13.11.21

COMPARTILHE: