À borda da primavera (Joel)

À BORDA DA PRIMAVERA
Crônica de quinta, Joel Gehlen, A Notícia 20 de setembro 2018

E o tempo do recolhimento se retira, depois de amanhã já é primavera. Desde anteontem, brotam e exalam para o universo os gravetos dos ipês que estiveram retraídos na estação do frio. Um tubérculo seboso explode em rútilas tulipas. E nós, ciosos seres, o que armazenamos em nossa ânfora? O que foi que recolhemos, regamos, cultivamos, alimentamos – desde abril – e agora entregaremos ao universo? Temos a justiça, a benevolência, a fraternidade? Aquilo que foi fortalecido com nossos sentimentos, atos e palavras torna-se a realidade em que vivemos.
O aspecto do mundo há de ser sempre o mesmo do centro da tua barca. O que há numa, há no outro. Já são tantas primaveras passadas, e em cada uma delas foi louvada a dádiva miraculosa da florescência. Mas a percepção mudou. Onde antes sentia poesia, hoje vejo retidão, boa vontade, altruísmo e o estrito cumprimento daquilo que se espera da natureza. Olhai os ipês amarelecidos, mas não te enganes! Não são a passiva alegoria da primavera que o tempo se encarrega de enfeitar. Para que possam riscar o fósforo de seus amarelos no chão, como se o próprio Sol nevasse, há um grande esforço, uma tessitura no céu e outra na Terra. Intensa fabricação ocorre nas galhadas sem plumas. Com dedos esquálidos, vazios e suplicantes fincados no azul distante, trabalham – os ipês – o parto dessa fugaz oferenda que pisamos distraídos pelas calçadas.
E assim é também contigo, canoeiro: o fruto da tua lavra é que levas no centro da tua barca para a travessia do rio-tempo. Nada há que não tenha sido feito. Ouso mesmo desdizer a “Mateus 6”: os lírios do campo trabalham, tecem e fiam! Há uma enorme mobilização de energias para despertar a vida de sua confortável latência, sacrificar o sono da semente, descer as radículas e subir os folículos. Uma árvore, mesmo crescida, não deixa que se passe um só momento de um único dia sem circular a seiva, tragar a luz e traduzir as folhas. Minuto a minuto nos empenhamos, conscientes ou involuntários, em dar causa e construir o legado com que seremos lembrados na superfície da Terra e nos ecos da eternidade. À borda do vasto mundo, não te perguntes quem o fez tão errôneo ou benévolo, ele espelha teus atos.