A cinza das horas (Bernadéte)

                    (…) Magoado e só,

– Só! – meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria…

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

– Esta pouca cinza fria…

                                   Manuel Bandeira (Epígrafe –1917)

A cinza das horas

                                                                                 Bernadéte Schatz Costa

Foi na primeira chuvarada do outono: a noite era sem lua. O marinheiro estava só, feito grão de lúmen no breu, exausto e salitroso de medo. Vestiu o vento, foi para baixo da árvore e remoeu as amarguras. É crua a vida!

A tormenta da tarde jogou o barco do marinheiro contra o rochedo, por pouco afundava junto.

Conhecia aquele lugarejo, já estivera ali. Arrastou-se por longo capinzal para proteger-se sob a sombra de velha árvore noturna. A chuva nos cabelos parecia cascata: o frio d’água era carícia antiga. Apenas um berloque em seu pescoço, com uma inscrição, aquecia sua pele da lábia do intenso temporal.

Pobre marinheiro: um vulto na madrugada vazia a ancorar-se no tronco da antiga conhecida, era uma silhueta estéril feito gato sem dono. A verdade é que aquela não era a primeira vez que uma tormenta o deixava sem agulha de marear.

Havia peso abisal em suas costas e um mar revolto nas entranhas. Por que estava à sombra daquela árvore novamente?

A cinza das horas não respondia suas perguntas.

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