A lenda da cobra Catuto
Zoinho e Zeca Canuto – respeitados pescadores de Parati – mal podiam conter-se. Aos sobressaltos, apavorados, foram tomados de tremura incomum. Também, quem mandou pescarem a cobra grande. Preparos feitos e montados a capricho: espinhel com trinta anzóis desses de pescar baleia. Escolhida a lua certa, deitaram a armadilha na curva do rio – passagem obrigatória da cobra grande. Em terra firme… Hosana! Aguardava-os uma multidão disposta a ovacionar os novos heróis.
Aí é que morava o problema, não contavam com recepção tão calorosa. A cobra catuto – objeto de tanta apreensão entre os moradores – finalmente estava ali, presa no espinhel. Como estava amanhecendo e ventava, e como ventava, o barulho era ensurdecedor. A cobra furiosa, grunhia, produzindo um barulho estridente, mais para bateria de escola de samba. Engraçadinhos riam. Preocupadas, as mães afastavam os filhos mais afoitos. Mas, como em terra de farra-de-boi coragem nunca é pouca, não faltavam os que se propunham a agarrar a fera a unha. Zé Bento, que chegara do boteco de Elias Insulina, comandava os mais exaltados. Embora fosse madrugada, não faltou alguém que trouxesse uma esperta aguardente, aguardente sempre encorajadora. Entre um gole e outro, a coragem crescia a olhos vistos.
Os menos avisados se perguntavam: Senhor Bom Jesus(!) por que tanto alvoroço?
Simples demais. A façanha dos supostos heróis foi que, da noite para o dia, espalhou-se pelo povoado um boato sobre a presença de uma cobra de proporções avantajadas que adentrara rio Parati adentro. Todos comentavam: padre, moiçolas, fedelhos, e assim por diante. Entre os pescadores, então… Uma cobra enorme, do tamanho do rio, se aninhara, entornando suas águas. Provocava enchentes descomunais, enchentes que nunca baixavam. Como pão fermentado o rio crescia, e sempre aos solavancos. E pior, com movimentos intermitentes a víbora produzia ondas colossais, nunca vistas antes. E tudo tinha que acontecer, e logo na véspera do Natal – comentavam os pescadores – num misto de tristeza – à meia boca.
As várzeas, ainda bem que naqueles tempos ainda havia várzeas – como depositárias das águas sobrantes arribaram pinchadas de lambaris, bagres, mandiús, muitos mandiús. Zoinho, um velho pescador, conhecedor do trecho e de cobras não tinha dúvidas: aquela víbora, de longe superava tudo, tudo o que tinha visto em vida.
Aliás, Zoinho – assim era chamado porque tinha olhos miúdos e pouco enxergava –, fora o único que a vira rebolando, cabeça fora d’água – coisa de trinta metros. Fossetas largas – olhos giratórios – infalível. Não encobrisse os olhos com a palma da mão e, certamente, seria tragado pelos seus encantos. Cobra encanta suas presas, entretendo-as, e as mesmas, dominadas, dançam até cair em sua boca.
Em razão desse contato – Zoinho e Zeca Canuto, dois argutos pescadores – resolveram antecipar-se aos fatos e promover uma expedição para capturá-la. Para tanto, contaram com apoio das mais diversas correntes políticas, e principalmente dos frequentadores do bar de Elias Insulina Até porque uma cobra daquele tamanho, além de meter medo, gerava uma concorrência inesperada – ao consumir os já escassos estoques de pescado – coisa de toneladas por dia. Enquanto alguns resignavam-se com o fato, outros interpretavam-no como um sinal dos tempos. Novena, fizeram até novena, e nada. Zoinho e Zeca Canuto – obstinados – decidiram partir para o ataque. Ou tudo ou nada. Alguém tinha que agir, e rapidamente.
Escolher a isca… que tarefa danada! Que peixe poderia atraí-la? Optaram pelo robalo, abundante no trecho. Ah, um detalhe importante: para manter o espinhel flutuando lançaram mão de uma dúzia de catutos. Belos catutos, produzidas no roçado do Quinzinho da Nega – morador das proximidades. Conhecidos também como porongos pelos alunos da Escola Agrícola de Araquari, foram preparados com esmero – secos à meia sombra – colhidos em lua minguante.
No dia marcado – uma noite de lua cheia – cheios de dedos conduziram a parafernália para o ponto escolhido. Coisa de onze horas – hora em que cobra dorme. Remaram leve – remada a remada – pausadamente.
De madrugada, ao retornar – quando deram com a cena –, tiveram surto de pavor… Arrastar ou não a fera, eis o desafio. Que estava presa não tiveram dúvida: o rio balouçava solenemente. A melhor escolha talvez fosse deixá-la esvair-se, entregar-se aos poucos – é o que pensaram de cara. E se, furiosa, enveredasse pela vila, arrastando espinhel e tudo, cismaram? Melhor enfrentá-la, ponderou Zeca Canuto, enquanto metia mais um gole de cana goela abaixo – o mesmo fazendo Zoinho.
Mãos a obra!… Sutilmente ergueram âncoras, se é que havia âncoras. As águas movimentavam-se embaladas pelo vento – uma aparente lestada. Esperavam por tudo menos pelo que sobreveio. Arrastavam um mostro de proporções indescritíveis. Mesmo com maré vazante, a velha canoa quase soçobrava. Madrugada, à meia luz, pouco enxergavam, mas o suficiente para pô-los em pânico. Dois olhos avermelhados se destacavam e, amedrontadores, geravam pânico. Uma barulheira infernal desdobrava-se, reproduzindo um som de chocalho – som típico de cobras venenosas. A danada devia ter parentesco com cobra de mato, cismava Zeca Canuto, num misto de pavor e rasgos de coragem. E corre-e-rema, e rema-e-corre. Pega-e-não-pega; singraram de bate-pronto até a outra margem – antes que fossem devorados pela víbora.
Foi quando se deram pela coisa: a multidão, a barulheira, corre-corre dos diabos. A notícia atravessa mundos em falas de mãe Joana.
E num espasmo, pavor…Ufa! salve-se quem puder, saltando do barco meio corcovado, Zoinho emendou:
– Quem for homem que se atraque – a nossa parte foi feita. E bandeou-se.
Não sobrou ninguém para emendar a história.
Há quem – e maldosamente – diga que o que se escancarou não foi cobra coisa nenhuma – mas apenas um espinhel – e trinta porongos saltitantes. Cachaça faz coisas. É o que dizem as más línguas, línguas afiadas das tricoteiras.
Araquari, 18 de dezembro de 2004
(Lenda contada por Pedro Almeida, filho de Araquari).