A fábrica de queijo

A saga de uma família

Queijeiro ou fabricante de queijo. Prefiro a segunda denominação, para definir a profissão de Adolibio Seibel durante a maior parte de sua vida. Mestre na arte, transmutava litros e litros de leite em queijo, tipo prato, poroso e delicioso, e do soro extraía a nata, depois transformada na mais pura e saborosa manteiga de que se tem notícia.

Os termos “profissão” e “fábrica” eram raros no vocabulário contextual da época. Mas é inevitável mencioná-los, porque fabricar queijo era uma das raras atividades produtivas não diretamente ligadas a terra, conhecidas pela população que vivia no meio rural do Rio Grande do Sul, a partir da década de 1930 até a década de 1970. Agricultura e pecuária de subsistência, principal meio de vida, ocupavam também o dia a dia das famílias que nasceram e viviam em Bom Princípio, Tupandi e nas demais colônias daquela região. Trabalhavam na lavoura de sol a sol, com equipamentos rústicos e precários, e os únicos meios de transporte ao seu dispor eram movidos a tração animal. Grande parte das ferramentas que utilizavam era por eles confeccionada, serviço realizado no paiol ou galpão, nos dias de chuva.

Vender o leite e em troca comprar gêneros, tecidos para vestuário e utilitários para a casa já significava um progresso. E na localidade de Santa Rita, interior de Tupandi, na época distrito de Montenegro, onde nossa história teve início, Arthur Weissheimer possuía uma Gescheftshaus – casa de negócios –, através da qual os colonos podiam escoar o excesso da sua produção agrícola, como alfafa, milho, feijão, etc.

Junto às atividades já estabelecidas, o negociante instalou uma fábrica de queijo. Em nada comparável às modernas indústrias de laticínios, porém, para os agricultores, uma nova fonte de renda, o que fez aumentar a criação de vacas leiteiras nas pequenas propriedades.

 

O queijeiro que veio de longe

 

Em meados da década de 1930, o “Libo”, como Adolíbio era chamado, chegou a Santa Rita para assumir a fábrica de queijo de seu primo Arthur Weissheimer, filho de Augusto e Maria Weissheimer. O trabalho exigia boa vontade e empenho, considerando-se as condições que a tecnologia elementar permitia, e, sem dúvida, uma qualidade a mais do novo trabalhador para ser notada e comentada pelos moradores. Forasteiro, jovem e bonito, Libo não tardou chamar a atenção das moças do lugar.  Mas não por muito tempo, porque logo encontrou a sua eleita, que o acompanharia pela vida afora: Maria Guilhermina, filha de Jacob e Johanna Francisca Rambo, da propriedade vizinha. Em junho de 1939 casaram-se e passaram a residir com a família Rambo por seis anos, ganhando a vida trabalhando na agricultura.

 

Anseio por uma nova vida

 

Em julho de 1945, já com quatro filhos – Nelci com 6 anos, Iloni com 4, João com 3 anos e Verno com 4 meses – a busca por novos horizontes levou a família a mudar-se para Bom Princípio, distante cerca de 20 km de Tupandi, na localidade de “Morro Preá” – Santhasenberg, vejam só que nome! Não nos consta que a localidade estivesse infestada do tal bichinho roedor. Ainda bem que mais tarde o local foi rebatizado para Passo Selbach (em consideração a uma travessia pelo Rio Caí).

Fomos morar numa nova, grande e bonita casa e o que mais? Uma fábrica de queijo. Hoje concluímos que a história de Adolibio Seibel estava escrita, com leite.  A propriedade, sem dúvida a mais bem estruturada da época em toda região, pertencia a Reinaldo Weissheimer, irmão de Arthur Weissheimer, uma família inteira dedicada às casas de negócios. Dois anos em regime de aluguel, após o que a propriedade foi adquirida, fruto de muito trabalho e economia. Só então podíamos considerá-la a “nossa casa”, segundo o conceito de propriedade e segurança do papai, o que soube muito bem transmitir aos nove filhos.

 

Trabalho, organização e suor

 

Moravam conosco, nos primeiros anos, tia Frida (irmã de Guilhermina) e tio Reinaldo (irmão de Adolíbio), conhecido por “Naldi”. Frida auxiliava nas lidas domésticas, onde se incluía a ordenha das vacas, pela manhã e à tardinha.  Era óbvio que fabricante de queijo tinha que se esmerar na produção de leite.

Naldi fazia o queijo, enquanto Adolíbio trabalhava na lavoura e criava suínos, atividade paralela e conveniente. Após alguns anos, tio Reinaldo se casou, indo morar em Canoas, e mais tarde a tia Frida também deixou a casa. A variedade de serviços pedia o funcionamento de uma empresa organizada, o que não era fácil, em função das limitações de então. Para dar conta de toda administração – die ganze Wirtschaft – a solução era contratar empregados.

A movimentação começava antes das 6 horas, a zero negativos ou a mais de 30 graus. Adolíbio abria a fábrica, tomava as providências para iniciar a função. Caderno de anotações e lápis à mão, balança, coador de leite. Acendia fogo sob o tacho, no qual os leiteiros lavavam as latas, após a pesagem do leite. Higiene era fundamental e o único fiscal sanitário era o “Seu Libo”. E se a limpeza não estivesse perfeita, bronca na certa. Também não se descuidava do “teste da água”. Havia alguns fornecedores que confundiam água com leite, e na ânsia de engordar a conta no fim do mês, misturavam os dois. Mas a receita, que eles julgavam secreta, não vingava. Em caso de dúvida, uma mostra ia parar em uma ampulheta, que continha uma mistura de mercúrio com álcool, e acusava com alto grau de precisão a quantidade de cada um dos ingredientes. A descoberta acabava em gritaria por parte do infrator, ao ser chamado para uma conversa e posterior acerto de contas. Enganar o “Seu Libo”? Não mesmo!

O leite de boa qualidade e sem água, é claro, aproximadamente 600 litros por dia, rendia em média 60 unidades de queijo. Cada queijo de um quilo consumia dez litros de leite. No verão, doze litros. Sem energia para refrigeração, o leite perdia em qualidade.

Cerca de 7 horas. Chegavam os leiteiros com o leite arrecadado nas diferentes localidades. Do Arroio das Pedras, campeão de produção, o transporte era feito em carroça, e das demais localidades, no lombo de cavalos, que vinham curvados sob o peso. Os latões eram pendurados na cangalha, armação de madeira, que também servia de sela para o leiteiro, que no meio daquele “depósito andante” se ajeitava da melhor forma e fazia o petiço (cavalo pequeno) andar, de propriedade em propriedade, até recolher a produção do dia.

Descarregar os latões era o primeiro passo. Em seguida transferir o leite a um recipiente especial para pesagem e anotação, para anotar a quantidade de cada cliente – litros e gramas – no caderno – Milch Heft, passar pelo coador para o grande tanque de latão, embutido em uma estrutura de concreto, do qual só sairia em forma de queijo.

Iniciava o processo de transformação. Acendia-se o fogo sob o tanque para esquentar o conteúdo, de forma moderada e gradativa. Misturavam-se algumas gotas de corante para dar ao futuro queijo uma cor dourada e o coalho, produto industrial importado, para agilizar o talhamento do leite, o que levava cerca de trinta minutos.

 

Intervalo para café

 

Entre uma e outra acha de lenha acrescentada ao fogo, esse período era aproveitado para um momento de descanso, tomar o café da manhã, rachar um pouco de lenha com o machado (era muita lenha, todos os dias), ou brincar com as crianças.

Quando o tio Naldi ainda era o queijeiro, adorava inventar brincadeiras com os sobrinhos. O petiço, meio de transporte de um dos leiteiros, ainda estava selado, esperando ser livrado daquela incômoda cangalha, para juntar-se aos mortais da sua raça, no potreiro. Era manso, concluiu o tio Naldi, quando resolveu sentar os quatro pequenos – Nelci, Iloni, João e Verno – sobre o cavalo, dois na rústica sela, um no lombo e outro no pescoço.

Se o animal se assustou ou sentiu cócegas, jamais saberemos. O fato é que saiu em disparada e quem assistiu ao tragicômico espetáculo só via criança voando para todo lado. O cavalo só parou porque deu de cara com o portão que levava ao potreiro, por sorte, fechado. Tio Naldi, acabrunhado com a travessura, ajudava Guilhermina a ajuntar os filhos, espalhados pelo pátio, todos no maior berreiro. Felizmente a façanha acabou sem ossos quebrados ou outras consequências desastrosas.

 

De volta ao posto

 

O termômetro acusava a temperatura ideal para dar continuidade ao processo.  Com uma espécie de pá, de lata ou zinco, material de todos os utensílios do gênero existentes, viravam-se lascas do leite já talhado, para misturar a gordura (nata), que se acumulava na superfície. Após, usando um arame de cerca de 80cm, com um gancho para segurar e outro na ponta inferior para não arranhar o fundo, cortava-se o conteúdo do tanque em quadradinhos. A autoridade maior de todos os passos era o fogo, alimentado conforme o termômetro, para alcançar os 39ºC.

Nesse momento o queijeiro incorporava sua verdadeira habilidade, com decisão, força e muito suor. Vestia um grande avental, que deveria ser impermeável. Material desconhecido na época, a peça era costurada por Guilhermina, em tecido de algodão grosso, que oferecia regular proteção a um possível banho de soro – o líquido esverdeado que sobra quando o leite talha. Arregaçar as mangas ao máximo, proteção na cabeça, mãos e braços bem limpos e uma toalha a jeito. Com uma grade de arame em uma armação de madeira, a ação consistia em transformar os cubinhos de leite talhado em migalhas. Dava-se então um tempo, para a massa sentar no fundo.

Nova etapa. Uma forma redonda, de 15cm de diâmetro e 80cm de comprimento, cheia de furinhos, era mergulhada no tanque, e, com a ajuda das mãos, enchida com a massa, já louca para sair daquela banheira quase fervente. Levantar a forma e levá-la até a mesa era um ato de maestria e rapidez. Pelos furinhos espirrava o soro quente e não escolhia destino: no chão, na roupa ou no rosto do operador. Lembrava um banho de chuveiro quente, mas muito mais pegajoso. A Nelci, a Iloni e também a Noeli têm certeza de que esses banhos involuntários de soro contribuíram para a manutenção da pele, suave, jovem e bonita até hoje, aos “vinte e uns anos”.

Liberar a massa daquela comprida forma sobre a mesa era outro desafio, para não quebrá-la. Com o uso de um medidor era cortada em pedaços de cerca de doze centímetros e colocada em formas individuais, que possuíam o mesmo diâmetro e furinhos da anterior, na seguinte sequência: um pano quadrado estendido sobre a forma e depois aquilo que já tinha uma leve semelhança com um queijo.

Dobravam-se as pontas do pano sobre a massa, como se fosse uma cestinha com pão. Sobre tudo isso um tijolo (liso e limpo), cujo peso prensava o queijo, para livrá-lo de todo líquido.

 

A tortura da virada 

 

O tampo da mesa, onde esta etapa se processava, era de madeira maciça, afunilada em uma das pontas, por onde escorria o líquido em uma lata. Às 4 horas da tarde, hora de “virar o queijo”, uma média de 40 a 70 unidades, conforme a quantidade de leite processado no dia. A tarefa era tirá-lo da forma, torcer o pano encharcado e repetir o processo da manhã, recolocando o queijo, porém do lado contrário.

Interromper as brincadeiras para enfrentar a missão era uma das torturas da nossa adolescência, pela qual todos passamos. Geralmente em dupla, éramos parceiros nesta empreitada. Até a Malu, com apenas 9 anos, já entrava no circuito. Um dos “duos” mais famosos era Noeli x Nestor, que, diga-se de passagem, aprontaram um bocado juntos. O trabalho tinha de ser bem feito, para dar a forma correta e arredondada ao queijo. Os que saíam deformados eram refugados pelo mercado. Portanto, eram vendidos aos vizinhos a preço menor ou consumidos pela família. Muitas vezes aconteciam “boicotes” e queijos nasciam tortos, para depois irem à nossa mesa. A Noeli, com o aval do Nestor (só o aval porque ele não comia queijo), era mestra neste particular.

 

O ciclo da cura 

 

Nem o queijo nasce pronto. Pela manhã, enquanto a função do dia iniciava, os queijos do dia anterior eram desenformados e transferidos para a mesa da salga, no salão de cura, por nós chamado de Keller – porão. Esfregavam-se punhados de sal em seu redor e na parte superior. E na manhã seguinte, no lado oposto de cada peça. O sal grosso era comprado em sacos de quinze quilos. Esvaziados, eram lavados e transformados em panos, para uso nas formas de queijo.

Após dois dias naquela mesa, o queijo era lavado e enfileirado nas prateleiras do Keller, para curar, ou amadurecer, com viradas diárias e possíveis novas lavadas, principalmente no inverno, quando era grande a tendência de criar bolor.

O queijo necessitava de uma semana para completar seu ciclo. Em períodos de muito frio e chuva demorava a curar e adquirir a sua típica cor dourada. Nesses casos a solução era armar mesas provisórias no pátio e colocá-lo ao sol. E nós, crianças, éramos elevadas à condição de severos guardiões dos queijos, contra gatos, cachorros e galinhas. Não era fácil, porque preferíamos brincar. E as galinhas e galos, ao menor descuido, faceiros, enchiam de bicadas aquelas preciosidades, prestes a virarem contos de réis. E nós, fortes candidatos a severas reprimendas do Adolíbio.

 

Embalagem e despacho

 

Queijos tipo prato, corados e apetitosos, prontos para o consumo. O tampo do tanque, uma tarde por semana, virava mesa de empacotamento. Cada folha de papel manteiga dava duas embalagens. Um rótulo, em forma octogonal, impresso nas cores azul e vermelho, continha o nome do fabricante – Adolíbio Seibel, endereço e alguns dados legais, além de uma vaquinha com um imenso úbere para completar – e era colocado sobre cada peça. Depois se enrolava o queijo, formando orelhinhas torcidas nos quatro cantos como balas de coco.

Acondicionado em caixas de madeira, o queijo ia para o caminhão, que o transportava a Porto Alegre, para armazéns de atacado. Considerado de excelente qualidade, a Varig, por longo tempo, adquiria parte do queijo de Adolíbio Seibel, para servir nas refeições a bordo.

 

Nada se perde

 

Observador e empreendedor, papai Adolíbio estava sempre atento às inovações que diziam respeito ao seu campo de ação. Vez por outra, acompanhava o transporte dos seus produtos, para averiguar a satisfação dos clientes e consumidores e também para se informar das novidades do mercado, em maior evidência na capital.

Foi em uma dessas viagens que tomou conhecimento da desnatadeira, máquina para extrair a nata que sobrara no soro e transformá-la em manteiga. Não demorou e a Rahm Maschine, de marca “Westphalia”, era parafusada no piso, em um dos cantos da fábrica. A notícia da instalação dessa engenhoca se alastrou, gerou visitas de vizinhos e curiosos, mas para nós significava duas pesadas horas de acréscimo na jornada, da já longa manhã.

Se todo processamento do queijo podia ser efetuado por uma pessoa de habilidade, desnatar o soro exigia três e, não esquecendo, com bom fôlego e força de braço. Era bonito assistir o filete de nata branquinha, escorrendo por uma torneira para um recipiente.

Na parte superior da máquina, bem acima do nível dos braços, havia uma espécie de bacia, na qual se despejava o soro. O outro trabalhador fazia o papel de gerador de energia, tocando a manivela em ritmo constante e acelerado. Enquanto a nata vertia numa linha fina, a torneira do soro jorrava e enchia uma grande lata em poucos minutos, substituída, supostamente sem derramar. Ao completar duas latas, carregava-se até a “sopeira dos porcos”, um tanque em que se preparava a refeição dos suínos e que ficava no outro lado da rua. Tudo tinha de funcionar como um cronômetro, senão desandava, saía soro na torneira da nata e por aí afora.

Os três operadores alternavam as funções, impossível dizer qual a mais forçada. Atenção total, principalmente na troca do operador da manivela, para não diminuir o ritmo. Se o suor vertia a cântaros em pleno inverno, imagine-se  no verão.

Na manivela, o campo de visão era limitado. À frente havia uma pequenina janela, por onde se vislumbrava um pouco do mundo, além daquelas paredes, envelhecidas pelo ataque diário do calor e da umidade. Familiarizados com cada manchinha na parede, a gente imaginava para elas variadas formas. A janelinha mostrava parte de um limoeiro, do qual percebíamos qualquer centelha de desenvolvimento. As novas folhas na primavera, as flores que se transformavam em frutos, que amadureciam, eram apanhados ou caíam. Girando a manivela pensávamos no almoço, na hora do descanso que viria depois, no dia seguinte, no próximo baile, no vestido novo, no namorado, no futuro, na vida… E dá-lhe manivela, dias, semanas, anos…

 

A manteiga dos deuses 

 

Nata sofrida, hein! Ia para o Keller, esperando ser transformada em manteiga. Duas vezes por semana a Butter Fass – espécie de batedeira manual, entrava em ação e a dita cuja era manejada (batida), até o conteúdo se render. Ao aparecerem os primeiros grânulos, dentro daquela barriquinha de madeira alta e longa, era a glória. Estava virando manteiga. Mais um pouco e se mudava o conteúdo para uma grande bacia, onde passava por inúmeras lavagens, até sumir qualquer resquício leitoso. Era doce, gostosa. A produção, de aproximadamente quinze quilos por semana, em pacotes de um quilo, era despachada junto com a carga do queijo.

Bem: a última ação da trajetória matinal, já passando do meio dia, era a limpeza da fábrica. Lavar em água quente e sabão feito em casa, uma por uma, as inúmeras (e ingratas) peças da desnatadeira e todos os apetrechos utilizados. Por fim o piso, com baldes de água tirada do poço à bomba manual, e vassoura. Dá para supor que todos adquirimos braços fortes.

             

Salinas e Bonitas

 

Adolíbio tomava providências para melhorar o seu negócio, as estendia também aos vizinhos e fornecedores. Optava sempre pela criação de animais de raça, tanto bovinos como suínos. Mantinha um touro de raça holandesa, através do qual também os colonos melhoravam a qualidade da sua criação, gerando vacas leiteiras de boa qualidade. Além dos filhos maiores que pegavam junto, havia dois empregados para os trabalhos na roça e uma empregada, que moravam na casa. Com eles dividíamos as tarefas, como se todos fizessem parte de uma grande família, e nos tratávamos com respeito e descontração.

Salina, Bonita e Negrinha são alguns dos nomes que identificavam as cinco ou seis vacas leiteiras, uma das prioridades do dia a dia, desde o trato até a ordenha. Aquela que não dava pelo menos um balde de leite duas vezes ao dia não era considerada boa o suficiente. Dependia, é claro, da alimentação delas e havia ainda os bezerros, que reivindicavam seu quinhão de leite em cada refeição.

A ordenha era trabalho das mulheres, lideradas por Guilhermina. Para começar, era preciso amarrar o rabo da vaca, para a ordenhadeira não correr o risco de levar uma rabada na cara. Depois, sentar no banquinho e dá-lhe tirar leite. Eu, então, não curtia nada este trabalho. Mesmo porque, como sou canhota (ou canhestra), as vacas estranhavam o toque diferente.

 

Administrar, uma questão de habilidade

 

Toda transação de escoamento da produção da fábrica de queijo, dos suínos gordos para a venda, assim como as compras de sal, coalho, corante, ração para os porcos e tudo o mais que não se encontrava em Bom Princípio, era feita através da empresa de Albino Hartmann, conhecido por Michelon. No final de cada mês, o acerto de contas, significando também dinheiro e troco miúdo para pagar os fornecedores do leite. O pagamento era individual a cada um, em dinheiro, até o último centavo.

Adolíbio, com a Milch Heft e lápis em punho, sua máquina de calcular, o cérebro, sentava-se à grande mesa do jantar e avisava: ”gurizada, não façam barulho que vou fazer as contas do leite”. Levava no mínimo três tardes, e quando o papai olhava para nós, por cima dos óculos, era hora de baixar a bola.

A sina incluía ainda o controle de abastecimento, manutenção dos utensílios, conserto das latas de leite, entre outras pequenas e grandes providências. Pequenos furinhos nos latões, “Seu Libo” consertava na fábrica. Com uma ferramenta semelhante a um martelo, esquentado ao fogo, fazia uma solda, com uma mistura de estanho – Zind e enxofre. Mas quando o buraco na lata era maior, ou até merecia um fundo novo, a história era outra…

 

Será que vai ter circo?

 

Todos nós fomos iniciados e escolados na operação fábrica de queijo e suas ações adjacentes. O Verno, em certa ocasião, com apenas onze anos, incumbido da tarefa, armou um andaime com caixas de cerveja para alcançar o tanque. Por pouco não mergulhou naquele mar de leite.

Virar o queijo e “transmontar” latas ao funileiro? Dessa ninguém escapava. Sentada na sela do cavalo, o indesejável trono, com oito a dez latas penduradas, rumava para a vila, até a funilaria (Blechschmidt) de Emílio Steffens. Para quem via, uma cena cômica.

Para nós, catastrófica. O barulho das latas batendo uma na outra era diretamente proporcional ao trote do cavalo. A prova de fogo era passar pelo centro da vila. Pelo estranho barulho, tínhamos certeza que as pessoas concluíam que estava sendo anunciada a vinda de um circo.

 

Com patos ainda pior

 

Um batalhão de patos tinha que ser depenado uma vez por mês. É verdade que as penas serviam para fazer macios e confortáveis travesseiros. Um dia Guilhermina, cansada dessa rotina mensal, resolveu vender seus patos branquinhos. O comprador?  O funileiro. Bem: dava pra imaginar o infortúnio que estava por vir…

E claro, Adolíbio não perdeu tempo: amarrou os pés dos patos e pendurou-os na cangalha do cavalo, como se fossem uma leva de escravos a serem enviados ao novo dono. De quebra aproveitou a oportunidade e intercalou-os com algumas latas de leite para consertar. A montadora, para transportar aquela inusitada carga, foi a Iloni. Ela afirmou até o fim da vida que as latas permaneceram quietas, amortecidas pelas macias penas dos bichinhos. Em contrapartida os marrecos, foi um tal de quá, quá, quá pelo centro de Bom Princípio, só vivenciando…

 

Revolução Industrial     

 

Nada permanece igual para sempre. Na Europa a Revolução Industrial já acontecera no século XIX. No Brasil, mais precisamente em Bom Princípio, quase um século depois. As pequenas fábricas de queijo aos poucos deixaram de ser um bom negócio, não só para Adolíbio Seibel, como para as outras existentes na região. Foi em 1961. Um empresário de Carlos Barbosa era proprietário de um imóvel na localidade de Santa Lúcia com instalações para fabricar queijo. Foi então criada a primeira indústria de médio porte de Bom Princípio, com a junção do leite de todos os fornecedores, a “Laticínios Santa Lúcia”. O fabricante contratado? Adolíbio Seibel.

 

Declínio da jornada

 

Instalou a indústria e a fez funcionar, puxando leite, carregando peso e dirigindo um velho caminhão da marca ‘Internacional’. Não era certamente um trabalho que dava prazer a Adolíbio, àquelas alturas da vida. Depois de determinado período, já com a saúde abalada pelos milhares de horas vividas em ambientes de umidade, vapor, suor, frio e calor, encerrou sua carreira de queijeiro.

Todos nós, os nove filhos, de alguma forma participamos dessa trajetória – Nelci, Iloni, João, Verno, Noeli, Nestor e Malu –, enquanto Luiz e Ricardo já vivenciaram as mudanças no ciclo das queijarias. A conclusão de todos nós irmãos é unânime. Nosso pai era um trabalhador nato, não tinha medo do pesado, não media esforços e estava sempre pronto a aceitar e experimentar inovações.  Lutou muito. Não ficou rico, mas foi um vencedor. De queijo em queijo nos deu o conforto que podia, nem sempre o que queria. Deu-nos educação para que pudéssemos continuar a nossa caminhada pela vida com as próprias pernas e conseguiu. Deixou-nos cedo, em junho de 1984. Mas no lugar em que está, com certeza é feliz, principalmente depois que a mamãe Guilhermina foi juntar-se a ele, em junho de 2010. Que Deus os mantenha sempre alertas para nos orientar e proteger…

(Excerto do livro “O balaio gigante”, que conta histórias e episódios da nossa infância e juventude, lançado em outubro de 2016))

 

 

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