A morte espia pelo rabo (David)

A MORTE ESPIA PELO RABO
David Gonçalves – Academia Joinvilense de Letras
Velhos e loucos peidam muito. Peidam fantasticamente. Não sei por que, mas peidam. Os loucos peidam e se divertem; os velhos, quase todos se aborrecem, constrangidos. Mas os loucos acham graça e riem pra valer. Os velhos, talvez, se chateiam por causa da ociosidade. A maioria solta os peidos com arte, principalmente em público, quando estão nas filas ou na igreja. Alguns não conseguem: lá vai a granada! Já os loucos peidam sem parar e gritam: “Soltem quem está preso!” E riem desbandeirados. Intoxicados de medicamentos, vítimas da nutrição, loucos e velhos são motivados às avessas: pelo rabo. Para desintoxicar, sopa de rábano e de repolho. Mas não ficam só nas fezes. Eles também se nutrem dos arrotos, seus delírios, suas tosses, suas melecas, suas cagadas. Um pergunta ao outro: “Já cagou hoje?” O outro responde: “Ah, faz três dias que não vou na casinha…” De uma hora para outra, a conversa dos velhinhos vira defecação. Os mais felizes são os que cagam todo dia. Quando velhos e loucos peidam e cagam, estão resguardados e felizes. Quem manda neles? O ânus, o rabo! Os jovens não precisam saber disso. Para quê? O corpo funciona. Mas esta verdade virá com o passar dos anos ou com a loucura. Qual é a conversa animada nos asilos? Sobre os filhos e netos que os abandonaram? Sobre o bailão de fim de semana? Nada disso! É sobre a cagada que não aconteceu… Qual a conversa no hospício? Sobre o maior peido.
Está vendo aquele velho? Está no bico do urubu. Por quê? Ora, ele não peida e não defeca há dez dias. É o fim. Está triste, sabe que está fodido. A mulher da foice está por perto. E no hospício? A mesma situação. Aquele lá acabrunhado… O que tem ele? Por que diz coisas sem pé nem cabeça? Há dias não peida e também não defeca. Está, e todos sabem, no bico do corvo. A sopa de rábano e de repolho não o ajuda mais. Os intestinos apodreceram. Por que digo essas coisas? Sou velho e louco feliz. Ah, não me pergunte por quê. Primeiro, estive no hospício de Quadrínculo por nove anos. Por que estive lá? Naquele tempo, quem pensava e questionava, era louco. Eu lia demais, queria ser escritor, não me conformava com os ditadores, então me puseram no hospício. Lá, aprendi muito. Aqueles médicos, doidos também, cansados de me ver, me mandaram pra este asilo. Aqui estou. Logo que cheguei, o enfraquecido dr. Medina, me foi perguntando: “Há quantos dias você não defeca?” Eu me espantei. Era a mesma pergunta que me faziam no hospício. “Ah, doutor, estou em dia.” Ele me olhou assustado. Por final, me disse: “Por aqui, a morte espia pelo rabo.” E riu – aquele risinho já sem força, de velho caduco. O que ele fazia todos os dias? Perguntava aos velhos se haviam peidado muito ou defecado. Travei muitas conversas com este sábio homem. Certa vez, me confessou: “Os jovens acordam todos os dias e estão com a cabeça lotadas de sonhos; os velhos acordam todos os dias e estão com o celeiro de baixo cada vez mais cheio de merda”.
“Olha este dedão!” – me mostrou, entusiasmado, o dedo mais longo da mão.
“O que tem esse dedo? Eu também tenho esse dedo, não é tão encorpado, mas tenho.”
Riu abertamente.
“Tem, sim, mas este aqui é o espião da morte. Todo homem tem receio dele. Depois dos quarenta, eles começam a temê-lo. Os machões choram, se acovardam.”
“O que o doutor faz com esse dedão?”
“Ah, ah, ah! Eu enfio no rabo dos homens, e fico observando a cara de espanto deles. Acredite: machões vertem lágrimas. Este dedão – e voltou a estendê-lo diante dos meus olhos – é o espião da morte. Com ele, eu espio o tempo de vida que resta ao pobre mortal.”
“Ah, entendi… Exame de próstata. Confesso que é muito desconfortável. Deveria ser algo natural.”
“Mas os homens temem. Eles sabem que, frequentemente, a mulher da foice os está rondando. Eu faço a minha parte: enfio o dedão! Esses velhinhos já não me olham como antes. Simplesmente fixam os olhos cinzas no meu dedão e ficam assustados.”
“Pois não é pra menos… Para os homens, meter-lhes algo estranho no ânus é como se perdesse a dignidade.”
“Coitados! Se soubessem que a morte lhes espia pelo rabo ficariam mais assustados.”
Que loucura! Dr. Medina era louco também.
“A mulher da foice” – continuou, como se dissertasse para um grupo seleto de médicos – “vai de quarto a quarto e vigia quem está com o intestino preso. Quando passa dos dez dias, ela começa a passar a foice rapidamente e levar as vidas sofridas.”
Dizia e ficava sério. Ele também sabia quem estava no bico do corvo.
Antes de morrer, Dr. Medina começou a contar os dias que não peidava e cagava. Um, dois, três… seis, sete… Quando chegou ao décimo, ele conclamou: “Me deixem em paz! Não quero mais remédios. A mulher da foice já está pra entrar neste quarto. Eu vi a safada passar pelo corredor. Quantas vezes eu disse a todos: a morte espia pelo rabo!” No dia seguinte, de madrugada, estava morto.
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