A princesinha quer dançar
No alto de um penhasco,
Bem na ponta de uma ilha,
Num palácio havia um rei
Que tinha um filho e uma filha.
A princesinha era linda,
De uma beleza que encanta.
Ela adorava dançar.
O seu nome era Samantha.
O rei era um homem gordo,
Tinha uma barriga enorme.
Mas ele se achava lindo,
Com sua pança disforme.
Usava roupas de seda,
Vaidoso como um pavão,
Com listras na vertical,
Disfarçando o barrigão.
Cantava mal, mas dizia
Ter voz doce como o mel.
E exigia ser chamado
“El Gran Rei Don Mabiel.”
Esse rei intransigente,
Um campeão do mau humor,
Implicava com toda gente:
Era um chato e um chateador.
Mal arranhava um teclado,
Mas se dizia um artista.
Era só um grande bobo,
Mas se julgava um cientista.
O rei, ranzinza e atrevido,
Que bom humor nunca tinha,
Vivia pegando no pé
Da rainha Terezinha:
“Essa menina não para,
Só quer saber de dançar.
Isso é uma impertinência
Que não irei tolerar.”
“Você, que é mãe, não controla
As vontades dessa filha.
Mas eu hei de controlá-la
Eu sou o rei desta ilha!”
“Não quero saber de danças!
Saiba que muito me irrita
Ver meneios e requebros,
Com que a menina se agita.”
“Como detesto dançar,
Desde já está decidido:
De hoje em diante, no reino,
Dançar fica proibido.”
“Mas, homem, tenha juízo”
Disse a tranquila rainha.
“Você não pode fazer
Isso com nossa filhinha.”
“Tanto posso, que o faço
E um edito baixarei:
Está proibida a dança
Por ordem do Grande Rei.”
Mas a rainha sabia
(a rainha era uma santa)
Como levar o ranzinza
Sem prejudicar Samantha.
“Meu velho, vá com calma,
Você tem que compreender:
A princesa é só uma moça
Que adora a vida viver.”
“Ela é uma jovem feliz,
Tem tanta alegria no peito!
Por isso vive dançando
E cantando – esse é seu jeito.”
“Vamos lá, tenha paciência
E uma coisa me prometa:
Não baixe esse tal decreto,
Tal loucura não cometa!”
“Está bem” – disse o monarca –
“Por ora vou tolerando.
Mas segure essa menina,
Não a quero ver dançando.”
“Muito bem, senhor esposo,
Eu agirei prontamente.
Vou pedir a nossa filha
Que não dance em sua frente.”
“Assim está bem, eu aceito,
Respeito é bom e eu gosto.
E ainda a farei não dançar,
Pode crer, nisso eu aposto.”
Ficou tranquila a rainha,
E foi com princesa falar:
“Minha filha, evite a dança
Quando o rei se aproximar.”
“Mas, mamãe, que coisa tola
Essa ideia do nosso pai.
Não deixarei de dançar,
Vê se dá um jeitinho, vai.”
“Querida, isso é arriscado,
Você sabe como é o rei.
É melhor se controlar,
Não sei se o convencerei.”
“Ah, mamãe, você é jeitosa,
Sabe o velho conduzir.
Ele é louco por você,
Fará o que você pedir.”
E a rainha foi embora,
Achando que poderia,
Com paciência, demover
O rei do que ele queria.
Mas dessa vez não deu certo:
Para sua grande surpresa,
Estava o decreto do rei
Na parede em frente à mesa!
“Impossível, ele o fez!
Eis o decreto maldito,
Ameaçando com prisão
Quem desafiar-lhe o edito.”
Ali estava bem claro,
No documento estampado:
“Está proibida a dança,
Durante o nosso reinado.”
“Certo o rei enlouqueceu!”
Pensou a rainha. E o povo!
“Precisamos, bem depressa,
Ver o príncipe de novo!”
Por certo se referiam
Ao príncipe Don Juliano,
Que, em missão no exterior,
Viajava há quase um ano.
O príncipe era um doce,
Um primor de criatura.
Sábio, tratava seu povo
Com paciência e brandura.
“Só o príncipe Don Juliano
Pode mudar nosso rei” –
Disse alguém – Vou avisá-lo,
Hoje mesmo partirei.”
Enquanto isso a princesa,
Que é dessas que não se rendem,
Desafiadora dançava:
“Quero ver se eles me prendem!”
“Menina, não faça isso!
Não piore as coisas pra gente.
Sou sua mãe e eu bem sei
Quanto o rei é intransigente.”
Mas Samantha era teimosa
Quanto seu pai era bravo:
“Pois dançado lhe mostrarei
Que aqui ninguém é escravo!”
Quando viu o seu decreto
Desafiado pela filha,
O rei tornou-se possesso
E percorreu toda a ilha.
“Certo não posso prendê-la,
O povo não perdoaria.
Além disso, gosto dela.
Não, eu nunca a prenderia.”
“Mas não posso permitir
Que essa menina imprudente
Faça de mim um palhaço
Na frente de toda gente.”
“Por isso faço esta viagem,
Todo o reino percorrendo.
E vou, com os meus soldados,
Instrumentos apreendendo.”
“Para dançar só com música!
Se eu apreendo os instrumentos,
Quero ver se vão dançar
Só com o ruído dos ventos”!
Aos músicos foi avisado:
Será preso quem tocar
E quem ousar, contra a lei,
Instrumentos improvisar.
Assim todo o reino murchou,
Sem dança e música viu-se.
Tão triste que o Conselho,
Em segredo, reuniu-se.
“Precisamos o rei deter”
– disse um Ministro de Estado.
“E como podes fazê-lo?”
Quis saber logo um Prelado.
“Ora, meus caros colegas,
Qualquer coisa aqui emperra.”
– disse um outro, perguntando:
“Cadê o Ministro da Guerra?”
“Está com o rei, em missão,
E com todos os soldados.
Estão perseguindo os músicos,
Mantendo-os intimidados.”
“É o que digo, colegas:
Esta reunião é infundada.
Se a força está com o rei,
Não podemos fazer nada.”
E os covardes se calaram
Com suas verdades eternas.
Para casa retornaram
Com o rabo enfiado entre as pernas.
Quando tudo estava perdido,
O rei voltando a palácio,
Todo o reino emudecido
E a música o pior negócio.
Quando tudo era tristeza
E enorme a desolação,
Só Samantha resistia
Com fé e determinação.
“Ah, então não temos música?
Assim mesmo hei de dançar!”
E a música que ela usava
Era o seu próprio cantar.
Era um cantar tão bonito,
Tão suave, tão harmonioso.
Que todos vinham pra ouvir
Um som tão maravilhoso.
Em silêncio todos vinham
À praça em frente ao Portal.
E ali ficavam a esperar
Aquela voz celestial.
Quando Samantha cantava,
Todos se enchiam de espanto:
“Como pode a princesinha
Possuir tão belo canto?”
O canto era calmo e belo,
Até mesmo um pouco triste.
Mas pode dizer-se agora:
É o mais lindo que existe!
Tão belo que os pássaros
Calavam-se para ouvir.
Até o vento se acalmava…
Era um mágico sentir.
Então, numa certa noite,
Estando o povo reunido,
Para ouvir sua princesa,
Sem fazer o menor ruído,
Para surpresa de todos,
Samantha desceu à praça
E, ao som de sua bela voz,
Dançou com sublime graça.
A voz e a dança cresceram,
Envolveram, coloriram
De luz e vida as pessoas
Que finalmente sorriram.
Sorriram, riram felizes,
Estavam vivas de novo!
Só porque sua princesa
Dançava para seu povo.
E então, milagre dos céus,
O povo inteiro dançou:
Crianças, velhos, mulheres,
Soldados – tudo mudou!
Quando o rei foi informado
Daquilo que acontecia,
Desceu à praça, furioso,
Com a guarda em sua companhia.
Mas a guarda também dançou!
Deram-se as mãos os soldados.
E, as mãos nas mãos do povo,
Foram da Graça tocados.
O rei e o Ministro da Guerra
Ficaram sós, a entrever:
‘Meu rei, contra tal inimigo,
Não há o que eu possa fazer.”
E o rei, desmoralizado,
Ao palácio retornou.
Sozinho, na escada escura,
Uma voz suave escutou:
“Eu lhe disse, meu querido,
Sua ideia era loucura.
Agora você está sozinho.
Para que tanta amargura?”
“Por que você não aceita
A alegria que há na vida?
Por que você foi tão duro
Com nossa filha querida?”
“Para poder impedi-la
De dançar, por alegria,
Você calou todo um reino
E fez em noite o seu dia.”
Assim falou a rainha.
Seus olhos, então, brilharam
E desses olhos bondosos
Duas lágrimas rolaram.
“Meu filho!” – falou, surpresa,
Ante o vulto que avançava.
O rei voltou-se também:
Era o príncipe que chegava.
“Meu pai” – disse Don Juliano,
“Que foi que lhe aconteceu?
Você perdeu o juízo,
Ou foi a fé que perdeu?”
“Foi a fé na humanidade,
Ou foi a fé em você?
Ou foi mesmo a fé em Deus?
Em que você hoje crê?’
“Esqueceu-se dos momentos
Mais suaves da existência,
Quando você me ensinava
Da música a doce essência?”
“Esqueceu-se que seus dedos
Levaram os meus ao teclado?
E que o dom da poesia
Me veio foi por seu lado?”
“Esqueceu-se da magia
Que infundiu no meu mundo,
Me ensinando Astronomia
E seu mistério profundo?”
“Ah, meu pai, mas que loucura
Isso que estou vendo agora!
Mal posso crer que é você
Esse monstro que devora.”
“Devora a alma de um povo,
Devora a Dança e a Arte,
Com a força de um exército,
Com o furor de um Bonaparte.”
“Agora não sei, meu pai,
O que fazermos consigo.
Mas deixe lhe sugerir:
Retorne à praça comigo.”
O rei, ainda hesitando,
Deixou-se levar pelo filho.
Na praça, a voz da princesa
Entoava um estribilho.
O rei foi chegando perto,
A multidão foi se abrindo.
Viu os olhos de Samantha,
Que lhe acenava, sorrindo.
Sem parar um só momento
De cantar e de dançar,
A princesa evoluía
Pela praça, a flutuar.
Sim, sua dança, tão leve,
Mais um flutuar parecia.
Enquanto dançava, cantava;
E enquanto cantava, sorria.
Era uma cena tão sublime,
Tão bela, transcendental!
Parecia até que um anjo
Dançava ante o Portal.
Então houve algo incrível:
O rei começou, dolente,
A se mover pela praça,
Num passo algo vacilante.
Aos poucos o povo todo
Foi vendo o rei se mover:
“Impossível – o rei dança!”
Algo difícil de crer…
Mas aquilo era verdade,
O rei dançava de fato.
Ao som da voz de sua filha,
Encenava um novo Ato.
Ato, talvez, de ópera,
Ou de cantata, quiçá.
Quê de coisas impossíveis,
Na alma de cada um está!
Pois o rei dançou em transe
Moveu-se com elegância,
Como seu corpo fora leve,
Como flutuasse à distância.
A princesa deu-lhe a mão,
Conduziu-o ao chafariz.
Lavou-lhe a fronte, tirou-lhe
A coroa de Flor de Lis.
Tudo isso fez sem parar
De dançar um só momento.
E, dançando, a acompanhava
O rei com encantamento.
“Cante comigo, meu pai,
Como há muito tempo atrás,
Nos dias em que você
Não sendo rei, tinha paz.”
“Cante com aquela voz suave
Que me embalou tantas vezes.
Cante e dance aqui comigo,
Façamos de vez as pazes.”
O velho rei bem tentou,
Mas a voz não lhe saía,
Embargada num soluço:
De tudo se arrependia.
E outro milagre se deu
Ante o povo estupefato:
O rei começou a cantar
E a interpretar novo ato.
Fez-se límpida sua voz,
Já todos podiam ouvir.
E em versos, de improviso,
O rei começou a abrir…
A abrir seu peito dorido
Pelo mal que havia causado.
Falou dos seus destemperos
E do quanto havia errado.
Declarou o seu amor
Pela rainha e seus filhos.
E o quanto que lhe custara
Ter que ser rei – E o que errara.
Disse amar a Astronomia
E, que a partir daquele dia,
Só a ela se dedicava
E, portanto…abdicava!
“Pensei, enquanto dançava,
E a uma conclusão cheguei
Ser monarca foi engano,
Não sirvo para ser rei.”
“Só usei o meu poder
Para regar meus prazeres.
Tive tudo e não logrei
Atender aos meus deveres.”
“O poder me fez mesquinho:
Fui menos rei que carrasco.
Agora vejo que é justo
Que o povo me tenha asco.”
“Mas já estou decidido:
Monarca não mais serei!
Já está na hora, meu povo
De terem um novo rei.”
“A partir de agora vou
Morar no Observatório.
Vou cultivar minhas rosas,
Viverei como um simplório.”
“Sei que nas melhores mãos
O meu reino deixarei.
A partir de hoje, então,
Juliano será seu rei.”
A multidão aplaudiu,
Pois o príncipe adorava.
“Juliano será o rei,
Bondoso que nos faltava.”
O príncipe, sim, concordou,
Era o que o povo queria.
Porém, naquele momento,
A todos surpreenderia:
“Escutem todos, lhes peço,
Por covarde não me tomem.
Porém, lhes pergunto agora:
Por que tem que ser um homem?”
“Eu não fujo dos encargos
Difíceis de os governar.
Mas quero que pensem bem
No conselho que vou dar:”
“Vocês já dispõem de um anjo
Que sempre lhes protegeu.
Minha mãe, nossa rainha,
Foi quem sempre os defendeu.”
“Sempre pensando no povo,
Os desmandos corrigindo,
A rainha foi clemente,
Co’a bondade lhes sorrindo.”
“Por isso lhes digo agora:
O trono que o rei detinha
Ficará mais adequado
Nas mãos da nossa rainha.”
“Meu filho, isso é impossível!
Nossa lei – e a tradição –
Obrigam que seja um homem
A assumir a sucessão.”
“E você, nobre Samantha,
Diga você, minha irmã:
O que julga ser melhor
Para, do reino, o amanhã?”
“Querido irmão, eu concordo
Com a vontade de nossos pais.
Assuma o trono e depois…
Bem, eis aqui o que mais:”
“Seja o rei por uns momentos.
Você sabe que, como rei,
Pode mudar qualquer regra
E pode editar qualquer lei.”
“Basta então que você faça
Uma nova lei dizendo:
‘Quem governa é a rainha’.
E pronto, está resolvendo.”
“Minha irmã, Deus a bendiga!
Você é sábia, além de bela.
Eu tinha essa enorme aflição,
Você soube resolvê-la.”
“Então esta é a vontade
De vosso rei, Don Juliano:
Terá a rainha o comando,
Será o povo o soberano.”
Don Juliano bem podia
Ser rei, porém não o quis.
Pensou primeiro no povo
E o povo, agora, é feliz.
Na verdade, os três governam,
O poder foi dividido.
A rainha e seus dois filhos
Fazem um governo unido.
Trata a rainha do povo,
Das casas, da Agricultura.
Juliano, da Economia.
E Samantha, da Cultura.
O reino agora prospera
E todos têm na lembrança:
Foi a Arte que os libertou,
A arte nobre da Dança.
Por isso esse povo Dança,
Dança em qualquer ocasião.
E, dançando, manifesta
À princesa gratidão.
Quanto ao rei Don Mabiel,
Não pensem que é infeliz.
Ele agora está vivendo
A vida que sempre quis.
Emagreceu e então se fez
Astrônomo de renome.
Descobriu tantos cometas
Que um, agora, tem SEU NOME!
Escrito em 1998, “A Princesinha quer dançar” só virou livro em 2012, quando o autor morava nos Estados Unidos.
Em 2015, o autor e o escritor e dramaturgo Jura Arruda, reescreveram o texto, adaptando-o como uma peça de teatro infantil.