? “A vida é um rio” (Nelci Seibel)
A VIDA É UM RIO
“A vida é como um rio em constante movimento, só de ida, sem retorno… Nesse trajeto cada pessoa percorre seu caminho, deixando rastros e agregando valores, até cumprir a missão que Deus lhe incumbiu na terra”. Pensamento criado para o cartão de lembrança da festa do 90º aniversário de minha mãe Guilhermina.
Minha mente trouxe à baila alguns detalhes do roteiro da vida de Guilhermina, que naquele momento me pareceu longo, muito longo. Tive o privilégio de conhecê-la por mais tempo, por ser a primeira, da fila de nove filhos, além dos trigêmeos que não sobreviveram ao nascimento prematuro.
Ao escrever aquela frase de reflexão, porém, não me ocorreu que em breve leria nela minha vida, embora com um bocado de anos a menos… Porque a vida segue, aconteça o que acontecer. As águas do rio correm, sem parar, até derramar-se no oceano, o finito! E não voltam. Nunca voltam. O passado depois de um segundo já é passado, e não adianta chorar pelo leite derramado. Nem o melhor momento e nem aquela gigantesca bobagem que se fez têm possibilidade de remendos.
Nasci durante a Segunda Guerra Mundial, conflito mais letal da história da humanidade, quando não havia ainda perspectivas para o seu triste final. Muito pequena, lembro-me do que o padre falava no sermão, quando acompanhava meus pais à Missa de domingo. “Rezem pelos mortos e pelos vivos da guerra”, dizia ele. E quando essa loucura mundial começou a apontar para o ocaso o pároco motivou a comunidade para uma grande campanha: “vamos doar alimentos não perecíveis para enviar aos nossos irmãos sobreviventes na derrotada Alemanha, que estão agora passando fome”. Foram reunidas toneladas. Com meus cinco anos, nem sabia o que era guerra, mas o que eu não entendera sobre essa imensurável tragédia procurava saber com meus pais. Marcou minha vida.
Na década de 1990 viajei pela primeira vez à Alemanha, como jornalista de Turismo do finado Jornal A Notícia. O guia de Turismo de Frankfurt nos mostrou a cidade, linda, viva e vibrante. Contudo, atendendo aos nossos questionamentos, destacava alguns resquícios da guerra, entre estes as maquetes em um museu: 1ª, a beleza e perfeição de toda cidade antes da guerra; 2ª, depois da guerra. A cidade totalmente destruída, com apenas UMA CASA! Uma, que sobrara em pé, como por milagre. Nela então se reuniam os sobreviventes, para procurar em meio ao entulho restos de madeira, pregos e o que mais poderia ser aproveitado na reconstrução da cidade. Pregos tortos e queimados eles desentortavam com pedras – não havia martelos… Vi a escada na casa do famoso escritor Johann Wolfgang von Goethe, refeita com as mesmas tábuas de antes, com as laterais queimadas e firmadas com pregos encontrados nas montanhas de demolição. Estão lá para quem quiser ver. Chorei muito, me senti um pouco com cinco anos outra vez e inserida naquela desgraça, pátria dos meus antepassados! Cheguei à conclusão de que o sangue da ancestralidade pulsa e vibra.
Falamos sempre que a vida é curta e costumamos avaliar somente os grandes feitos, esquecendo-nos das pequenas ações, que em geral são as que realmente contam.
Cresci, estudei, fiquei com raiva das freiras no internato, dancei, namorei, casei. Nas entrelinhas lavei roupa no arroio, costurei, bordei, fiz tricô, transformei muito leite em queijo na fábrica de queijo especial “Para Todos” de Adolibio Seibel, meu pai, andei a pé até a vila em jornadas sem conta, fiz teatro, aprendi a ler em alemão inclusive o gótico com minha Vó Francisca, à luz de uma tremeluzente lamparina a querosene, li dezenas de livros da biblioteca juvenil da “Ação Católica”. Vivi a vida de interior em que pequenas alegrias eram ouvir músicas de banda no rádio movido à bateria de veículo, cantar com as irmãs nos bancos da grande varanda em noites de verão, escuras ou de luar, porque não havia energia elétrica. Comentar o vestido novo em execução para o próximo baile na Sociedade Santa Cecília e o casamento de amigos e conhecidos.
Um poeta gaúcho pouco conhecido, Ozeias Bonette escreveu que: “a vida é como uma viagem de trem, em companhia dos pais, irmãos e amigos, só amor e alegria”. Em cada estação alguns passageiros desembarcam, outros embarcam. Novas amizades, novos relacionamentos, novos amores. E saudades também, daqueles que foram e não retornarão. Porém, a viagem continua, com novas personagens, cenários e experiências renovadas.
Dizem que, para uma vida completa é preciso ter filhos, plantar uma árvore e escrever um livro. Tenho três filhos de bom caráter, empresários e que são meu orgulho; três preciosas noras e cinco netos queridos se encaminhando para a vida própria. Escrevi não um, mas vários livros, sem falar nas mais de três décadas de jornal, artigos, contos, crônicas e poemas. Viajei pelo Brasil e pelo mundo e decidi que depois de uma viagem nunca mais se é a mesma. E plantei árvores também. Em teoria, missão cumprida. Mas a fila anda e parar por quê? Embora o grande Poeta gaúcho Mário Quintana, meu preferido, em seu poema “O Tempo” diz:
“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é Natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado (…)”.
E ainda inseriu em suas linhas poéticas: “o tempo é um ponto de vista. Velho é quem é um dia mais velho que a gente…”
Sem esquecer que Fernando Pessoa, outro poeta preferido me marcou com a frase: “Viver não é necessário, o que é necessário é criar”.
Portanto, se Mário Quintana declara que depois de 50 anos é tarde demais para ser reprovado imagine-se depois de 80! Havia um tempo em que eu não revelava minha idade nem sob tortura. Mas passou. Conclui que nada perco nem ganho com esse segredo. Traduzindo 80 anos, somam 29.200 dias. Muitos nebulosos, muitos iluminados. Uns felizes outros nem tanto. Não me arrependo de nada, mesmo porque nada mudaria. Os erros servem para novos aprendizados. Sou feliz e sempre serei enquanto puder criar, expressar opiniões e pensamentos para a análise dos meus confrades da Academia Joinvilense de Letras e para todos os que me honrarem com sua leitura.
Assim sendo, me atenho à frase de Fernando Pessoa: “Viver (…), necessário é criar”. Todos os dias, para continuar a viver.
Nelci Seibel
1.7.2020