A falha no diamante (Lufiego)

A Falha No Diamante

Este é um texto ficcional, uma fábula, do início ao fim, uma alegoria em homenagem ao leitor. Os personagens, incluindo o narrador, são todos fictícios.

Há muito tempo, quando eu tinha quatorze anos, ouvi a história do diamante riscado na porta da Sinagoga da Rua Bento Figueiredo, no Bonfim, em Porto Alegre. Meus avós paternos moravam naquela rua arborizada, próxima ao Parque Farroupilha, a famosa Redenção. O portão de nossa casa ficava exatamente em frente à porta do Templo consagrado ao Deus de Israel. Ali tive o privilégio de conhecer gente bondosa e sábia. Meus amigos eram quase todos ricos e o grupo se dividia entre gremistas e colorados. Eu era pobre, meu pai estava em lugar incerto e não sabido, mas meus avós não eram pobres. Então, como criança e, depois, adolescente, gostava muito de lá. Do parreiral, onde eu e meus primos comíamos as melhores uvas, da criação de cães perdigueiros do meu avô, imigrante espanhol, fugido da Espanha em um navio, porque na guerra civil matou um padre, que o perseguia, do aviário da minha avó, do galinheiro, do viveiro das codornas, das idas à banca de revistas comprar figurinhas. Lembro até hoje do álbum “História Natural”, com seus cromos fantásticos de dinossauros, planetas, vulcões, amebas e cachalotes; dos domingos de Grenal, emoção à flor da pele desde a primeira hora do dia. Meu avô mandou construir uma parede, na varanda do andar de cima, para separar as duas torcidas; único assunto em que a minha família se mostrava literalmente dividida.

Um dia, como era comum, eu e meu amigo Isaac, filho mais moço do rabino, jogávamos Xadrez no espaço de entrada da Sinagoga, onde batia um solzinho vespertino, que atraía a todos. Ganhei do meu tio, o meu primeiro “Jogo de Xadrez”: tabuleiro de papelão e as pecinhas de plástico. As brancas, na verdade, eram beges, meio amareladas, mas serviam muito bem para jogar. Aproveito para confessar que o Xadrez me ajudou a aprender a “pensar” antes de falar e agir, mas nunca me permitiu gostar de Dominó e do Jogo de Damas. Ali, naquele espaço tão familiar, jogando Xadrez, ouvi o rabino contar a história, não lembro exatamente para quem, acredito que era para o irmão mais velho do meu parceiro, Renan, que, aliás, tratava a gurizada, como um verdadeiro irmão mais velho. Sempre atencioso com Isaac e camarada conosco. Resolvia todos os nossos problemas. Era um dos melhores alunos do Colégio Israelita. O brilho daquele diamante ficou gravado na minha memória para sempre e a história era mais ou menos assim:

Era uma vez, num reino distante e alegórico, a existência de um povo feliz e abastado, regido por Príncipes dignos de respeito e consideração, verdadeiramente amados pelos súditos. Todos viviam em paz, dedicados ao trabalho, à pesquisa, à astronomia, à literatura, à música; os poetas declamavam para públicos enormes. Os escritores mais lidos, pela ordem, eram: Machado de Assis, Thomas Mann, David Benabrahão, Stephen Hawking e Christian Jacq. Mozart era ouvido todos os dias. A Flauta Mágica era a mais popular das composições. Os discursos do Dr. King sobre direitos civis eram decorados pelos jovens. O povo era realmente feliz. Amava a dramaturgia, ensinada nas escolas desde a primeira série. Os teatros sempre estavam lotados. Os atores e atrizes de destaque, além dos aplausos que recebiam de plateias numerosas, estavam entre os que mais faturavam. Muitos eram milionários e moravam em belíssimos palácios, alguns no alto de penhascos, com vista para o mar mais azul que poderia existir. O funcionamento dos teatros gerava milhares de empregos e altos salários. Não conheciam o futebol e o carnaval. Os súditos impressionavam pela elegância no vestir, nos modos sociais e pela erudição. O rei era jovem, bonito, sua pele era negra como o ébano; era sábio e apaixonado por sua rainha, considerada a mais bela flor de todo o jardim universal. Governava aconselhando-se com os mais velhos e tinha muitos conselheiros; embora tivesse todo o poder, recebido dos ancestrais do povo, foi ensinado pela rainha-mãe, que ainda era viva, a ouvir as reprimendas dos mais velhos, olhando para o chão, e assim sempre fazia. O poder ancestral jamais fora usado para perpetrar atos de violência. Realmente, muitas pessoas de outros lugares no mundo não acreditavam que o reino alegórico existia. Todavia, lá estava ele; próspero e feliz! Até que um dia . . .

O casal real possuía um raro e enorme diamante, da mais pura constituição mineral e com a mais bela lapidação. Os Soberanos não cabiam em si de tanta alegria, pois sua pedra preciosa não tinha igual no mundo e era um presente do povo! Entretanto, acidentalmente, o diamante sofreu um arranhão numa de suas facetas. Adveio daí uma grande preocupação. O rei consultou todos os sábios da Corte. Vieram todos os lapidários do Reino. Ninguém atinou numa solução, sem que se fizesse uma nova lapidação, o que o Rei não queria, com medo de perder o brilho da pedra. Como último recurso, foi chamado o Rabi da Sinagoga, que, com muita simplicidade, esculpiu uma delicada flor, em homenagem à rainha, transformando o arranhão em haste e trazendo de volta a felicidade de todos, que durou para sempre.

Moral da história: num ambiente propício, um coração bem formado sempre encontra uma solução para os piores problemas, podendo transformar em virtude o pior defeito.

Marcelo Lufiego

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