Ac. Apolinário leu “Minhas Viagens com Heródoto”, de Ryszard Kapuscinski

Alguns livros ficam na memória por longo tempo. Acabo de ler, pela terceira vez nos últimos anos, um desses livros exemplares: “Minhas Viagens com Heródoto’, de Ryszard Kapuscinski, (Companhia das Letras, 2006).

Kapuschinski foi um jornalista polonês que viveu de 1932 a 2007. Criado numa Polônia dominada primeiro pelos nazistas e depois pelos soviéticos, sua obsessão era viajar, conhecer ‘o outro lado da fronteira’. E o destino do jovem repórter se cumpriu de forma inexorável e brilhante. Por cerca de 300 páginas acompanhamos o jornalista em suas miraculosas e espetaculares viagens pela Índia, China e África. No justo momento em que o mundo empreende um novo salto de modernidade, depois de duas grandes guerras mundiais.

Na Índia, de 500 milhões de habitantes, na China da ‘revolução cultural’ de Mao Tse Tung e na África, de sucessivos golpes de estado. Viagens notáveis, descritas com meticulosidade, humor e seriedade. Cenários surpreendentes e narrativas chocantes para o leitor brasileiro, ainda num tempo de aviões precários, países sem estradas e cidades com hotéis improvisados em regiões inóspitas. Tudo é surreal e, assim mesmo, o repórter avança, contando como é o cotidiano das cidades em que se desloca. O jornalista é um intuitivo com domínio da palavra e, mais notável ainda, se faz acompanhar de Heródoto, sim, o ‘pai da história’, o formidável autor de ‘História’, escrita 500 anos de Cristo. Esse o segredo do livro de Kapuscinski, a revelação de seu companheiro de viagens por cidades remotas dos anos 50/60 do século passado, relendo o clássico do grego que primeiro escreveu ‘para que os feitos dos homens não desapareçam’.

Heródoto, para Kapuscinski, fez a ‘primeira grande reportagem da literatura mundial’. Trata-se de um calhamaço de textos sobre as viagens do grego nascido em Halicarnasso, no Helesponto, – atual Istambul – há 2.500 anos por territórios igualmente precários de então, junto aos citas, aos persas e aos egípcios. É maravilhoso, fantástico, surpreendente. As viagens de Heródoto se misturam com as de Kapuscinski e, de ambos, nos tornamos amigos, nascendo um grau de intimidade e de respeito que nos assusta e, ainda, nos apaixona. Daí a leitura pela terceira vez, pois trata-se de obra de intimista, no meio do burburinho dos tempos modernos. Estamos todos, os leitores e os autores, mergulhados numa só viagem, apesar dos 2500 anos de distância que nos separam do grego e dos 50 anos do polonês. E viajamos numa só viagem pela Índia, pela China e pela África. Reportagens genais através da história, com textos primorosos – lê-se trechos de Heródoto no livro de Kapuscinski – e assim vamos nos tornando companheiros na viagem de dois lúcidos e serenos repórteres, na perspectiva já do terceiro milênio depois de Cristo.

Nada que encontramos hoje na imprensa mundial. Muitos menos no Brasil. Os que têm meia idade lembram de jornais e revistas recheados de textos e fotos bem elaborados e que exigiam tempo do leitor. Nada parecido com o que temos presentemente, nos tempos das ‘fake news’ e das redes sociais. Não temos jornalismo, apenas a obsessão populista e retorcida de sensacionalismo, de forma que os mais velhos ficam aborrecidos com a pobreza intelectual que inunda veículos de comunicação e universidades.

Trata-se de novo contraste, entre os tempos de Heródoto e de Kapuscinski, com o nosso cotidiano, nesta mistura global de tensão e expectativa. Um contraste, contudo, que vamos assimilando assim que o repórter da Polônia mostra a ‘normalidade’ da África de nossos dias, com a guerra de Xerxes nas terras dos gregos, em 400 antes de Cristo. Vivemos, a humanidade, sempre assim, às vésperas de ‘acontecimentos terríveis’, na tensa espera de que o mundo está prestes a explodir. Mais agora, quando populistas e moleques governam países ricos e populosos, como acontece nos Estados Unidos primeiro e no Brasil, agora.

Sublinhando as diferenças de povos, de religiões, de cotidianos e do inesperado fim do jornalismo, tal qual o conhecemos por tantos milhares de anos, que o grego – como criador da reportagem e o polonês como fiel discípulo do mesmo jornalismo – a lição que fica mesmo, é de que o mundo está mudando e mudando de uma forma radical, como nunca antes em qualquer momento da história. A sensação que nos prende às páginas, é a permanente constatação de que perdemos sim o prazer da vida que os antigos cultivaram com talento, preocupados em caminhar pelas cidades, discutir os assuntos do dia na praça e de saborear o que tivesse para comer, as frutas do dia, o queijo e o vinho, o pão e as raízes, disponíveis eles em viver a vida assim como ela lhes era oferecida. Pois, afinal, como diz o autor, a lição essencial é de que ‘conhecer e buscar compreender outras culturas é um exercício de tolerância e autocrítica’. Nada melhor para os dias explosivos e nervosos em que vivemos, sob o ritmo de um novo ciclo de globalização e confusão.

Resenha de Apolinário Ternes

 

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