Ac. Apolinário Ternes concede entrevista para o Boletim do Arquivo Histórico de Jlle

Apolinário Ternes é entrevistado pela Doutora Giane Maria de Souza

 

GMS – O senhor nasceu em Joinville em 1949. Como foi a sua infância e juventude, considerando as transformações da cidade a partir das suas memórias familiares, profissão dos pais, bairro em que viveu?

AT — Sim, nasci na Maternidade Darci Vargas, inaugurada dois anos antes. Meus pais moraram num casarão colonial na Rua do Príncipe, quase junto ao cruzamento com a Rua São Pedro, atual Ministro Calógeras.

Nas imediações da igreja matriz, nasci, justo, num dos primeiros trechos pavimentados do ainda modesto núcleo urbano. Pavimentado há pouco mais de dez anos, a partir de 1936. Sempre fui um cidadão urbano. Não conheci outros modos de vida, como a rural, a de colono, ou pequeno produtor de alimentos. Meu pai foi um pequeno comerciante, tinha uma venda de secos e molhados na atual rua São Paulo, esquina com a Rua Santos, na entrada para o moinho. Moramos em várias casas, sempre de aluguel e sempre no centro.

Aos 11 anos fui para o seminário. Desisti aos 13, e cheguei ao primeiro emprego aos 14 anos de idade, em março de 1964. Meu primeiro emprego era de ‘estafeta’ ou office-boy, na Companhia Antarctica Paulista, nas mesmas instalações que continuam na Rua 15 de Novembro.

Aos 18, iniciei minha carreira de jornalista, em Blumenau, na Rádio Nereu Ramos. Estávamos em 1968, o ano em que a ditadura decretou o Ato 5, das rebeliões de maio, da censura e da guerrilha.

Joinville, em 1951, quando comemorou o primeiro século, era uma cidade pequena. Industrializada, com classes econômicas bem definidas. Pouquíssimos, muitos ricos, outros bem de vida e a maioria pobre mesmo. A cidade usava a bicicleta, tinha, acho, quatro ou cinco policiais e um jipe velho. As casas eram cuidadas e havia jardins, cercas de madeira e trabalho para todos. Uma típica cidade europeia, encravada num Sul diferente. O prefeito era respeitado, o padre mandava também e, a partir de 1957, o bispo mandava em quase todos e todos pediam a benção aos religiosos.

De repente, a partir do “milagre econômico” da década de 1960, a cidade foi se transformando muito rapidamente. Cresceram os empregos, as ruas, os bairros, escolas e as igrejas. A cidade, então, estava gerando “o ovo da serpente”.  Políticos populistas e mentirosos começaram a aparecer. E isto foi crescendo e já tomou mais de meio século de Joinville. Agora estamos ainda mais desamparados, porque, afinal, a política é um permanente caso de polícia, a polícia não dá¡ conta da violência e do tráfico, a religião perdeu o poder, não temos imprensa ou jornalismo, só essa coisa medonha de apresentadores-pastores, com a mediocridade reinante nessa coisa horrenda que chamam de comunicação e imprensa.

E temos a queda na qualidade da educação, do ensino fundamental ao dito superior, onde reina, igualmente, a mesma mediocridade da política, da cultura, das “entidades de classe”. Enfim, Joinville não é diferente do resto do país, onde se sobressaem apenas os radicais. Tempos ásperos, diria Mário Vargas Llosa.

GMS — Apesar do senhor ser formado em Direito, a história e o jornalismo se tornaram as duas principais áreas norteadoras na sua vida profissional. Podes nos contar sobre como esse processo se estabeleceu?

AT – Sim, mas antes em História. Na Univille, em 1978. Depois Direito, em 1986, no Guimbala. Depois Mestrado em Educação e Sociedade pela Udesc, em 2003. Nunca exerci a advocacia, sempre optei por jornalismo e fiz da História um apêndice importante. Jornalista por 47 anos. Desde então, vivo, agora, a dolorosa viuvez de ver país mergulhado na insensatez e mediocridade. É de chorar ver o que aconteceu com a imprensa, e não só no Brasil. Nossos tempos são de completo desequilíbrio e século do conhecimento e do ‘online’ está desorientando milhões de pessoas em qualquer lugar do planeta.

A História chegou em 1975, quando pulei do curso de Letras para o de História. Depois, em 1977, fui designado para dirigir o Arquivo Histórico, no lugar de Adolfo Schneider e, com aquele afastamento, o prefeito Luiz Henrique pôde negociar com a família Ficker, a devolução dos documentos da cidade.

Escrevi, então, História de Joinville, uma abordagem crítica, publicado em 1981. Dali foram surgindo dezenas de livros, sempre contemplando Joinville, suas instituições, seu urbanismo, sua economia, etc.

Foram 36 livros, um a um, desde 1975. Sempre fazendo jornalismo, no cargo de editorialista de A Notícia por 29 anos consecutivos. Um editorial a cada dia, 365 por ano e foram quase dez mil.

GMS — Desde 1968 o senhor foi um importante articulista do Jornal A Notícia. Como foi trabalhar neste jornal, como era a redação, a estrutura, os interlocutores, a agenda? Como os articulistas e editores trabalham no cotidiano da imprensa anos atrás?

AT — Jornalismo naquele tempo obedecia a outros parâmetros, ainda que, então, já mantinha relação direta com a política. Os poderosos sempre mandam, alguns com dinheiro, outros com mentiras e demagogia. Jornalismo sempre foi uma tentativa de colocar um pouco de compostura na vida pública. Hoje estamos sem freios, sem limites e sem compostura. Basta ver o que acontece no Brasil polarizado de nossos dias, onde os criminosos de ontem – mesmo na cadeia – hoje são candidatos a tudo, até mesmo à presidência da República.

Tenho saudade de jornais que publicavam grandes artigos, ensaios, críticas, reportagens brilhantes. É preciso buscar algum exemplar da revista Realidade para ver como foi o jornalismo brasileiro. Quase nada que temos agora é digno de ser chamado de jornalismo. É tudo guerrilha política…

Conheci o jornal A Notícia com apenas oito empregados, no primeiro ano da década de 1970. Fiquei por lã¡ quase até 2013, quando me silenciaram. Foi um tempo bom, cheio de realizações e de acontecimentos épicos. Mas, como tudo passa, também isto já é passado. Vejamos o carpe diem de hoje.

GMS – O senhor durante muitos anos teve uma vida ativa em instituições culturais da cidade, foi membro da Comissão de Voluntários do Museu Nacional de Imigração e Colonização (MNIC) e diretor do Arquivo Histórico de Joinville (AHJ) e Biblioteca Municipal Rolf Colin. Também foi membro do Conselho Municipal e Estadual de Cultura. Como eram as estruturas conselhistas no período da sua atuação? O que precisamos melhorar nas políticas públicas da Cultura, na cidade e no estado? Como foram essas experiências? Existia à época uma maior valorização da cultura na cidade?

AT – Sim, ocupei muitos cargos na vida cultural de Joinville. E estive também no Conselho estadual de cultura. Havia maior participação da sociedade, não do povo. Este nunca teve tempo para pensar ou viver a cultura. Não devemos esquecer que Joinville é uma cidade de operários e de salários pequenos. Bem abaixo do que se imagina. Mesmo assim, foram criados eventos que se destacaram, como o Festival de Danças, a Feira do Livro, os museus funcionavam e os artistas se movimentavam. Tínhamos galerias de arte, exposição coletiva anual dos artistas plásticos, depois da biblioteca, que detinha o maior acervo de livros de Santa Catarina, foram criados a Casa da Cultura, o Museu do Sambaqui, o de Arte Moderna e o Fritz Alt. Chegou o Bolshoi. E, depois, veio o que temos hoje, quase tudo parado, sem vida espiritual, sem criação, sem apoio do poder público ou da iniciativa privada. Mas já foi pior, houve tempo em que os telhados desabavam sobre as instituições.

GMS – Como membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC), o senhor contribuiu para o registro e a salvaguarda de documentos e da história dos intelectuais. Quais os principais nomes e trabalhos desenvolvidos pelo IHGSC que podem auxiliar a pensar a história do estado?

AT – Do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, a instituição cultural mais antiga do Estado, criada em 1896, tenho a honra de ser sócio emérito. Fui acolhido em 1991, e, em 2005 recebi a Comenda Joaquim Manoel de Almeida Coelho, que é outorgado apenas a um nome a cada ano. No mesmo ano de 2005, também fui agraciado com a Medalha Anita Garibaldi do governo de SC e recebi o título de Cidadão Honorário de Joinville. De fato, tudo isso me engrandece e me orgulha muito.

O Instituto Histórico e a Academia de Letras de SC, do qual participo, desde o ano de 2018, ocupando a cadeira número 8, a mesma que pertenceu ao senador Carlos Gomes de Oliveira, também de Joinville, ocupam lugares únicos na cena cultural de Santa Catarina. São instituições que estão se renovando e modernizando, inclusive com reuniões por via digital. É muito gratificante participar de seus trabalhos.

GMS — O Arquivo Histórico de Joinville (AHJ) completou 50 anos no dia 20 de março de 2022. Qual é a importância do AHJ para o patrimônio histórico e arquivístico brasileiro?

AT — O Arquivo Histórico de Joinville, que acaba de completar 50 anos de existência, tem lugar único no cenário cultural de Joinville. É um dos mais ricos do país, em matéria de reunir e preservar um colossal conjunto de documentos originais, fotografias, mapas e coleções de jornais do século 19 e 20, inclusive a única coleção completa do jornal fundado por Ottokar Doerffel, em 1862 e que perdurou por 80 anos, até© 1942. Sua continuidade, sua organização e seus serviços de atendimento ao público, de restauração de documentos e de pesquisa histórica são notáveis e maravilhosos. Um tesouro, um tabernáculo da cidade.

GMS – A cidade de Joinville, enquanto objeto dos seus estudos, se desenvolveu muito nas últimas décadas, mas ainda possui muitos problemas e desafios. Como pensar a interlocução do passado, presente e futuro da cidade?

AT – Não sou dos mais otimistas quanto ao futuro de Joinville. A cidade perdeu sua identidade, sofreu os abalos de um crescimento desordenado e, como quase todo país, vive um período de crise de liderança. Não temos políticos representativos, não temos uma voz no meio empresarial, os artistas estão desaparecendo, o meio estudantil não é mais o mesmo, a própria universidade se encolheu e nada sabemos dela. Nem mesmo se existe em algum lugar. Assim como desapareceu por completo a mídia de Joinville. O que fazer então? Qual o nosso futuro? São os efeitos da globalização e da pandemia cultural em que o mundo se meteu. Será interessante acompanhar os próximos anos. Nem sabemos o que será feito da História e qual o destino dos papéis, dos mapas, das fotografias hoje reunidas no Arquivo Histórico. Apesar da velocidade de tudo, até da guerra no leste europeu, o futuro deve reservar belas surpresas aos que estão vindo. Gostaria de ter 12 anos, e não 72 como de fato tenho. Obrigado.

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