Ac. Guerreiro leu “Puro”, de Andrew Miller

Recomendar um romance histórico quando se é historiador constitui um dilema, a questão reside em que a construção literária e, particularmente o romance deve libertar a imaginação em oposição ao rigor histórico que o limita.

Li “Puro” de Andrew Miller, prestigiado autor inglês que partiu de fato histórico e construiu obra significativa a meu ver por não utilizar a linguagem da época, algo artificial e anacrônico, mas como se vivêssemos e sentíssemos a atmosfera e o momento datado: 1785. Trata-se da decisão ministerial sob o reino de Louis XVI de destruir o cemitério de Les Innocents e a igreja situados no centro de Paris ao lado do mercado de Les Halles; remover os ossuários, as fossas coletivas e lançá-los em poço profundo na pedreira calcária de Porte d’Enfer. A igreja originalmente datada do século XV exibia ossuários que representavam a grandiosidade e imperdoável vaidade humana, as fossas coletivas abrigavam trinta gerações, inclusive os milhares de despojos da Peste Negra de 1348 até que em 7 de maio de 1780 um muro de contenção caiu devido ao excesso de peso aflorando seu conteúdo. O odor fétido de há muito era convivido na área, mas o Parlamento decide pelo encerramento do cemitério por motivo sanitário e a transferência durante 18 meses para outro local. esses os fatos históricos.

.O romance é uma metáfora a partir de uma questão essencial no  Iluminismo de Voltaire: qual o valor do passado, o que deve ser conservado e o que deve ser esquecido, o livro uma metáfora do processo inexorável do tempo e da necessidade de deixar a tirania do passado para trás. Vivemos então no romance a impureza da sociedade, a  sujeira do mundo na aparente simplicidade e o anúncio de mudanças que sinalizam algo maior que as fossas, o período pré-revolucionário a 1789 e o fim da monarquia através do pseudônimo “Bêche” ( pá) por pichadores ameaçando a realeza. Há a metáfora do flogisto grego, o elemento combustível presente em tudo, fogo latente capaz de ser despertado tanto como doença humana como social. Caberá ao leitor refletir nos subtextos as metáforas e a parábola do elefante citado no início e entrevisto ao fim, seria ele a monarquia, o Estado, a  razão ? As epígrafes nos capítulos são perfeitas sinalizando o momento histórico pré-revolucionário desde Condorcet a Lavoisier, da vida que  transcorre apesar da presença da morte e da razão acima da emoção.

E a editora Bertrand Brasil foi extremamente feliz ao escolher para ilustração da capa a gravura  de Goya: o sono da razão produz monstros e alterá-la substituindo os morcegos por corvos, afinal mensageiros da morte.

COMPARTILHE: