Antártida (Salustiano)
ANTÁRTIDA
A verdade é que estava cansado.
Fantástica era a paisagem. Fitava os montes brancos no gelo avolumado sobre o mar, embrumando-se nos respingos de cerração que se dissipavam na cálida réstia de sol, que teimava adentrar pelo grosso vidro. Placidez na imensidão branca que insistia tornar-se cinza no continente gelado. Por onde olhasse saltavam salpicados negros no cinzento esbranquiçado que fixava os píncaros no céu de azul opaco, plúmbeas montanhas de dedo em riste derramando-se no mar empalidecido de sombrio. Soçobravam icebergs tranquilos azulando contornos, alguns, de perto, delineados de quase luminosa transparência, outros mais ao longe, em denso desalinho no horizonte, perfilados na mesma direção, qual aguerridos soldados em desabrida peleja.
Fazia frio. De dolorido a imiscuir-se pelo corpo, a permear ossos na busca pela alma, cobrindo com indelével manta de tristeza o âmago dorido. Aconchegou o cobertor, qual colgadura a adornar combalido corpo e sorveu pequena dose de vinho. Leve tremor percorreu-lhe o corpo, aquentando as entranhas, como lenitivo a banir o torpor. Ah, quanto tempo não sentia esse doce amargor a salpicar as papilas.
O suave balouçar do navio o embalava no doce canto de seus encantos, braços de mãe na impingida saudade, madre ventre a guarnecer esquecido carinho. O sentir das dormentes pernas o fez fixar-se em si. Não era cansaço de corpo, era pesar do pensar, fadiga de alma, renúncia ao sopro, resolução de contrato na sua doce entrega ao desconhecido.
Sorriu melancolia. A amada se fora, entranhada em incógnita interrogação a carecer réplica. Restava-lhe reminiscências sôfregas dissipadas na memória, ora a lhe pregar peças.
Relembrava outonais ventos a espalhar o amarelo dos ipês, setembros de tons floridos a murmurejar jardins abandonados, pétalas em lágrimas a homenagear a esfacelada despedida, jardim que em auspiciosa era já florira cuidados.
No suave oscilar, o raio de empalidecido sol afagou seus pensares, como a pensar seus pesares, feridas fletidas em vida desgarrada, arremetendo-o aos vislumbres das aventuras vividas, ora não tão vívidas. Sim, vivera a vida, esse enigma entregue em áurea taça, cobiça inalcançável aos que urgem partir a última jornada, mescla malbaratada na juventude, dosada no avançar dos anos e poupada em parcos dispêndios no esvair-se da vida, graal sorvido parcamente no avançar da idade.
Vivera. Atravessara quentes areias de inóspitos desertos, conhecera exóticos povos de excêntricos costumes, partilhara risos desdentados de pouco possuir, celebrara pão na partilha da fome, compartira vinho nos brindes da alegria, galgara irrespiráveis montanhas de picos ofuscantes, presenciara exuberantes migrações em savanas cinematográficas. E mitigara o porquê da sempre busca, sofisma inerente a perquirir razão ao tudo, ao nada.
Vivera. O incógnito vislumbre de alma a habitar tênue corpo. Entregara-se ao vício do viver em plenitude esgazeada em tisnados de quiçás, alvíssaras bradadas em uníssonos questionamentos. Dissoluto na transviada juventude, quedava-se a perscrutar razão no tempo, esse perdulário destruidor dos sonhos do que somos, senhor onisciente a exigir quinhão da breve existência.
A amada se fora. Vislumbrava seu menear nos tracejados do escorrer de água pelos vidros da escotilha. Sentia as mirradas mãos afagando suas cãs, parcas esbranquiçadas a tumultuar calvície. Só, restara-lhe o vazio da alma, resquícios do completar-se. De quando eram unos em discrepâncias como unos eram os cúmplices sorrisos.
Talvez o vinho, quiçá o sol, sentia leve torpor a inundar o trôpego corpo. A amada sorriu no vidro, era louco, jamais poderia beber. Beber? O que é a vida senão o beber dessa mísera taça ofertada, transbordando amálgama de júbilo e dor? Esse sorver e esvair-se no lampejar da vivência? Esse leve transitar entre demência e sanidade, embriaguez e realidade?
Quem não se embriaga do tépido sol das frias manhãs invernais? Ou dos pueris sorrisos de olhos límpidos e mãozinhas estendidas?
Ergueu em triste sorriso, a urdir cumprimento, a taça ao grupo ao lado. Brindavam exultação ao compartirem alegrias. Relembrava os amigos à roda na solitária despedida, cantando as músicas do antes, prenunciando nas lágrimas ocultas o não retorno, despedindo-se em emudecida e solitária decisão jamais confidenciada.
Vivera. Aos poucos definhara no trilhar da vereda, olhos obscurecidos pelas sombras lançadas na estrada ressequida pelo tempo. Curvado ao cansaço imposto pelo transcurso, cedera à doença, em oferenda, o alquebrado corpo. Acometido, privara-se de tudo e todos, frívolos desejos que agora recolhiam-se ao recôndito da alma, lembrança guarnecida na fímbria da ofuscada memória.
Levou a taça ao nariz e deixou-se embriagar pelo aroma. Sorriu ao lembrar-se dos remédios, assim como sorriu ao observar o rubi violáceo do tinto drapejando ao sol. Lembrou-se dos que ficaram. Tinha prole, é bem verdade, deixara semente a perpetuar a espécie, cumprira o sacro juramento, pacto onde não se escolhe a direção, no inexorável caminhar rumo ao ocaso. Em implacável substituição, manutenção do ente maior no qual nos entranhamos, restamos no caminho, em seletivo descarte. No maquinar da trama chamada existência não há destino, não existe sorte, apenas a lenta e gradual corrida em direção ao grande mistério, precipício de alva mácula, relicário prestes a recolher o eu final.
Vivera, apercebendo-se lentamente da finitude, jogo em que nascemos vencidos, cartas marcadas sem anuência. Num átimo aqui somos postos sem joeira. Arrogantes, preparamo-nos para o muito, em dádiva pouca. No misto de arrogância que nos subsume não percebemos a grandeza de nossa pequenez. No caudaloso esvair dos que passam, sobramos apenas esmaecida sombra de efêmera passagem, de tênue desvanecer.
A mão trêmula levou a taça à boca, tolhendo o último sorvo, embriagando-se na réstia de sol que lhe afagava a sorvada face. Sentiu a arritmia pulsar em frêmito no derreado dorso.
Lançou um último olhar à tepidez da manhã, contemplando a altivez das montanhas sob o iridescente manto de gelo. Com imperceptível sorriso cerrou os olhos, lançando-se no infinito despenhadeiro das interrogações.
Salustiano Souza