Ao pé da letra

Aos urbanistas e conselheiros da cidade, para que se atenham à preservação dos aspectos citadinos.

Desde quando vim para Joinville, há mais de 40 anos, até agora noto, com tristeza, o desaparecimento paulatino, mas constante, de locais de estabelecimentos que seriam referenciais da cidade, especialmente para quem nasceu ou viveu aqui sua infância, adolescência ou juventude.

A começar pelo Rio Cachoeira, a maior vergonha municipal joinvilense e cuja despoluição deveria ser ponto de honra da cidadania local.

Psicólogos, sociólogos, urbanistas se empenham na conservação destes pontos referenciais porque fazem parte da memória, não só da comuna, mas, principalmente, da comunidade, de cada cidadão.

Ah, “era ali, me lembro…”. Verdade que há bens comuns, semelhante aos dinossauros, que não se adaptam e desaparecem.

A tristeza dos nostálgicos, dos passadistas, dos românticos – iguais a mim – está ganhando bases cientificas, pois a destruição destes pontos referenciais influi negativamente sobre o comportamento psicossomático.

Nestes 40 anos, conheci o bife do Ravache; a feijoada do Ian; o sorvete do Mirko; o especial da Polar; a costela do Zé Gordo e do Ernesto; o chope do Victor Hart; o café do Brunkow; os doces do Dietrich; o filé da Rex; o serviço econômico do Bitsch; a hotelaria e culinária do velho Schmidt no Trocadero. Só em culinária e locais onde se podia ir, então… Desapareceram!

Havia trens que nos levaram às audiências em São Francisco do Sul, Guaramirim, Jaraguá do Sul, São Bento do Sul. As marias-fumaças da maravilhosa crônica de Borges de Garuva em 15-5-96, no “Anexo” e, anteriormente, da Urda Klueger.

Partiam daquela estação que, antes de ser tombada, ainda vai tombar definitivamente, pela falta de cultura e vontade política dos sobas.

Muita compra fizemos no Jorge Mayerle, amigo e cliente, e no Alfredinho Boehm, cuja família foi uma das criadoras do supermercado, com lojas espalhadas por toda a Manchester.

Restam alguns destes curiosos supermercados provincianos, onde se poderia encontrar quase de tudo em mercadoria. Sem dúvida, o mais famoso, mais folclórico, talvez pelos seus donos, fosse aquele da rua Doutor João Colin.

Era até ponto turístico pela tradição, pela variedade de produtos à disposição dos milhares de fregueses. Ali, se encontrava desde mel (mel puro!) até camisetas de malha cinzenta; desde setra (funda, schleud?) até prego sem cabeça; desde fogos juninos até finíssima renda de Bruges.

Levei ali um ministro do Tribunal do Trabalho que, encantado, adquiriu um tamanco de madeira, procurado há tempo, para calçar quando lava seu veleiro.

Ainda hoje me pergunta pela loja e pelo seu proprietário, a quem fiz questão de apresentar, porque era uma figura. Nunca tive coragem de lhe dizer que desapareceram ambos.

Sua loja – fazia questão de que fosse conhecida assim – só não tinha “self-service”, porque ele sabia de cor e salteado o preço e o lugar de cada mercadoria e adorava uma prosa com os fregueses.

O lema da loja poderia ser: “Se aqui não encontrar, nem adianta procurar”. Verdade indiscutível. Orgulho de todos os joinvilenses. Houve, à época, discussões acaloradas sobre qual seria mais completo: ela ou o Makro.

Ponto referencial, virou tema de estórias. Particularmente, pelas observações do seu proprietário. Vamos a algumas delas.

Certo dia, um colono entrou correndo na loja e, se dirigindo ao dono, Fernando Tilp, velhos conhecidos que eram, gritou:

– Seu Fernando, me dá uma ratoeira que preciso pegar o ônibus de Pirabeiraba…

– Tesculpa, teste tamanho só por encomenda. Maior é pros ratazanas.

Advogado, desportista náutico, recém-chegado à comarca, orientado pelos companheiros do Iate, foi lá fazer compras.

– Que tezecha?

–Nove metros de corda.

–Pra quê?

–Para amarrar a minha lancha.

– Enton, zer cabo. E cabo zó vendemos a quilo.

– E, agora, como faço?

– Zimples, medimos nove metros e peçamos.

Jovem senhora, recém-casada, para aumentar a renda familiar resolveu criar galinhas no enorme quintal. E verificou, horrorizada, que a galinha quebrava os ovos no choco com o bico.

Alguém, mais experiente, disse-lhe que deveria colocar ovos de chumbo no ninho. Ela bicando, sentiria dor e não quebraria mais os ovos. Pavlov puro!

– Onde acho?

Recebeu a explicação para ir lá.

De tarde, foi atrás dos tais ovos de metal.

– Zim, minha Zenhorra, posso ajudar? – perguntou-lhe um senhor, simpático, olhos glaucos, curiosos e vivos, meio curvado.

– O senhor tem ovos de chumbo?

– Non, minha zenhora – e, passando a mão esquerda pelas costas, esclareceu – é do coluna mesmo.

 

 

 

 

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