As mãos na manhã de Fernando (Joel)
As mãos na manhã de Fernando
O coração de Fernando José Karl não esperou a primavera chegar. O poeta respirou pela última vez às 6 horas e 30 minutos na manhã do dia 16 de agosto, em Curitiba. Não existe mais aquela voz doce e caroável, o homem imenso habitado por uma criança precoce, que distribui estrelas como se faz na noite dos doces. O homem que embarcou na gare da eternidade desse triste agosto praticou a vida com uma nobreza de outro mundo. Amou a música, as palavras e as musas com delicada ferocidade. Consciente de que cada sopro é sempre a última vez que respira, cravou na generosidade das partilhas a marca indelével da sua vida. E mesmo no seu instante de cera, estendia as mãos no gesto cômico de distribuir as suas flores do adeus.
Passou a vida sem ter nada de seu. E assim é que partiu, mergulhado numa fontana de margaridas, trajando jaqueta jeans, feito um banhista de Badgerd. Nada ali é dele, nem a página branca daquele rosto. Só as mãos são de Fernando. Aquelas mãos inábeis para o egoísmo do mundo, que não souberam travar outro combate senão com as palavras; aquelas mãos que nunca aprenderam o sentido da posse, ainda estavam ali, quando ele já não era. Nascidas com o dom do desapego, mais vivas do que nunca, tão vazias quanto sempre, as mãos de Fernando foram deixadas para trás. A hora final triunfava sem trombetas, sem vento, sem que tambores rufassem, numa transparência de lúcidas lágrimas. Mas havia aqueles dedos posicionados como quem porta uma caneta, como quem autografa um livro, no exato instante que surge o último poema. Ninguém avisou às mãos do Fernando para cruzarem os dedos no gesto exausto do descanso! E ali estão elas, como sempre, disponíveis à precipitação da escrita, no sacerdócio que exerceram por toda a vida e que exercitam na eternidade.
Fernando viveu com altivez a penúria que lhe coube, com um espírito de sultão no andrajo da matéria. E assim tombou o último mamute do prado. Tão solitário na morte, quanto na vida. Nenhum clamor se agitou na manada que nele dessedentou a secura da sua escrita, e que ainda rumina o último repastou da sua presença. Não há mais tempo para ele justificar-se a que veio, mas cabe a nós, todos os que somos tributários da sua inesgotável generosidade. Poetas, arautos, músicos, pintores do amanhã, em quem ele depositou a audácia da esperança.
Sintamo-nos inundados dessa luz que não machuca a noite, pois sabe que o escuro é que aviva o brilho. Esse luzir dos vaga-lumes que dissolvem o corpo na escuridão para que nem mesmo a sua forma distraia nossa percepção desse lume vagante que risca a lousa noturna com o pó dos astros, e desaparece sem deixar mesmo um traço de giz. O seu fluir nos instila um estado de atenção e diz – pela voz da fatuidade – que a vida passa, que nada é permanente, que não se pode acumular o essencial, que não há outro momento senão esse. O grande sortilégio é a passagem! Só o fim permanece. Travamos a luta silente de uma vida inteira para chegar ao sublime das palavras com as quais, enfim, a mudez se quebraria; e só agora aprendemos que o silêncio profundo é a sumidade incomparável.
Sobre os colmos dos trigais, que o teu punho cosa em bruma um vestido para a lua, um destino para as Musas, outro acorde pra Beethoven. E por mais que nos acossem as vilezas desse mundo, que a sóbria côdea do poema sobressaia aos anátemas no lagar dos agapantos.