Casa na praia (David)

Casa na praia 
David Gonçalves
Os dois amigos proseavam na mesa do bar num fim de tarde.
— Onde passará as festas?
— Na praia, Quero ver a queima de fogos.
— Você tem casa na praia?
— Tenho. Não é lá grande coisa, mas o pobre merece algumas benesses…
— Só de ouvir falar desse assunto me arrepia. Até os pelos dos braços eriçaram!
— Por quê?
— Cachorro mordido de cobra… Já fui vítima. Possuí uma casa de veraneio. Amassei e comi o pão do diabo. Era meu sonho. A gente do interior sonha com uma casa na praia. Me endividei até o pescoço. Mas não valeu a pena…
— O que aconteceu?
— Aborrecimentos. Casa de veraneio é boa alegria quando se compra e quando se vende. Os parentes aborrecem, os falsos amigos também. Quando a parentalha soube de minha aquisição, toda apareceu, tanto os meus como os da mulher. Sorrisos e mimos não faltaram. Nunca vi tantos agrados. Lisonjas e mais lisonjas. A cabeça ficou zonza de tanta massagem no ego. Nunca fui vaidoso, mas vi a vaidade brotar e florescer.
— Caramba, que coisa!… O que aconteceu?
— O primeiro verão foi maravilhoso. O entra-e-sai de parentes e amigos. Festas de arromba. Minha mulher, na cozinha, sentia-se fatigada, bolinhos e quitude, churrasco, docinho de abóbora, saladinha de xuxu. Meus bolsos se esvaziavam: eu tinha que fazer compras para abastecer armários e geladeira. Na falta de dinheiro, o cartão de crédito. Foram dois meses de muita agitação e gratidão. Revi parentes e amigos, e todos se encantavam com minha pequena casa na praia.
— É bom rever os parentes e amigos… Na vida moderna, o tempo é escasso.
— Mas espalhou-se por toda Quadrínculo que eu tinha casa na orla. Todos contavam maravilhas. Ninguém era mais bondoso do que eu e sabia receber as pessoas. A coisa desandou… No verão seguinte…
— Certos amigos só aparecem nos belos dias de sol.
— É isso, rapaz! No verão seguinte, vieram parentes distantes — de Minas Gerais, de Goiás, de São Paulo, gente que nunca me visitara. E trouxeram os seus amigos, aquelas pessoas nunca haviam me cumprimentado na rua. De repente, surgiam do nada, caídos de paraquedas e ávidos por picanha e cerveja. Lá estava minha esposa exausta na cozinha cheirando a frituras. Eu, nas compras diárias. Crianças corriam de um lado a outro, quebrando o que havia e os pais achavam engraçado. Ninguém mexia uma palha. Fartavam-se, gargalhavam, arrotavam e contavam façanhas. Vi o humor de minha mulher, que pilotava o fogão e lavava o monte de louças e talheres, transformar-se, e minhas economias voarem. A dívida no cartão de crédito crescia. Tão ocupado e cansado estava que não consegui tempo para um banho no mar…
— Pra algumas pessoas, pimenta nos olhos dos outros é refresco.
— Isso mesmo! Mas sobrevivi ao segundo verão. Estropiado, mas sobrevivi. Então, veio o terceiro verão, a gota d´água. Parentes e amigos mais distantes se tornaram íntimos. Carros apinhados, sem avisar, foram chegando, até uma Kombi velha batendo a lataria, com estudantes do colégio. Lá estavam minha mulher na cozinha e eu na via-sacra pelos armazéns abastecendo a despensa. Bocas famintas, homens e mulheres brancos e tostados de sol, e crianças mal-educadas, se apinhavam na casa e no quintal, com pequenas barracas. “Onde vamos dormir?” Eu dizia: “Por aí, por aí.” No meio de janeiro, quando o verão fervilha, haviam quase cem pessoas abancadas. Minha mulher estava pálida, para não dizer cadavérica. Eu já não tinha forças nem nas pernas. De noite, era gente espalhada por todos os cantos, roncando, arrotando, vomitando, peidando. Queixavam-se do desconforto: “Você tem que comprar ar condicionado. Quase não dormi por causa do calor e dos pernilongos! Que desconforto.” Por causa de uma mãe de um parente distante, que mal se movia numa cadeira de roda, fomos obrigados a ceder a cama e acabamos dormindo no chão áspero da lavanderia. Por azar, a água acabou. E houve uma semana de chuvarada. A casa se transformou num curral apertado e fedorento. Banheiros fediam, pessoas fediam. Todos reclamavam. Minha paciência se esgotou.
— O que você fez?
— Fiquei malcriado. Querem tomar banho? O mar está ali. Querem mijar e cagar? O terreno baldio está na outra esquina. Querem cerveja? O armazém está logo a uma quadra. Querem picanha? O açougue está ali. Ah, também carvão? Voltem no armazém. “Que grosseria!” — resmungavam. As mocinhas peitudinhas e vadias diziam: “Ah, o tio está tratando a gente como estranho…” Eu rebatia: “Quem pariu Mateus, que cuide dele, suas vaquinhas de asfalto!” Um a um, diziam: “Vou embora, nunca vi tanta grosseria…” Vão tarde, eu disse, rosnando. Em três dias, a casa esvaziou. Estava um lixo. Parecia que um bando de porcos havia passado por ali. Minha mulher estava mais cadavérica ainda. Eu estava um pau de virar tripas. Mas, enfim, o sossego.
— O que fez com a casa?
— Vendi por preço de banana. Por toda a região de Quadrínculo, passei a ser um cidadão malquisto, que não tem alma e nem consideração. Por causa de uma casa na praia… Bem, está ficando tarde, obrigado pela prosa, tenho que ir. Ah, boas festas! E não fale pra ninguém que tem casa na praia… Isso poderá estragar sua vida.
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