Casarão Backmeyer (Zabot)
CASARÃO BACKMEYER
São Francisco do Sul, casarão Backmeyer, muito de história – mais ainda de memória. Memória viva do socialismo utópico, corrente filosófica surgida na França e na Inglaterra em meados do século XVIII. E a península do Saí guarda traços dessa aventura. Não do falanstério de Fourier engolido pelo tempo que nada poupa e pouco perdoa, mas resquícios. Apenas resquícios. Reminiscências.
Cá entre nós, no entanto – a Vila da Glória -, instiga. Saltam aos olhos as pegadas de desbravadores. Importante: Dom Pedro II avalizou o projeto do Falanstério, assim como dos anarquistas italianos de Giovani Rossi, em Palmeiras, vizinho Paraná. Ousado nosso imperador, não!
Visita não programada, mas estando no trecho, damos as caras por lá – Casarão Backmeyer. Põe estrada precária no trecho. Cabeças de pedra afloram. Ou por outra: pedras crescem a olhos vistos. Chanfradas. Lançante tem disso… enxurradas. E as águas cavam. E quando cavam, intermitentes, espraiam voçorocas corrugadas. Pingos de chuva, milhares deles operam como pequenos torpedos. Pancadaria de martelos. Sinfonia do caos. Prodígio da mãe natureza.
A surpresa, no entanto: o velho casarão mesmo esqualipado, resiste. No porão a placa exposta, embora desbotada, não nega: 1901. Vem-me à mente outro casarão. Teixerinha o imortalizou na música: Velho Casarão. Por lá havia uma figueira. Não era o caso, ali não havia furos de bala, pois o Saí, embora as vicissitudes ostenta amabilidades. Mas, por outro lado, há a mata Atlântica. Espraia-se soberana. Luxuriante. André e Valdomir, remanescentes da família, apontam: 720 mil metros quadrados devidamente preservados bordejam o casarão.
Após prosa animada, a trilha. Sim, há uma trilha que margeia encantador manancial de águas cristalinas. E damos de percorre-la. Passos descompassados. Aqui escadaria improvisada, acolá corrimão. Precipício, perau, ambiente engendrado pela natureza. Vegetação exuberante. Verde-vivo. Canelas, muitas canelas, cedros, jacatirões, araçás de casca arroxeada, ingazeiros e tucaneiras… Infinidades de espécies. Dossel aconchegante.
Vencida a primeira arribada – corpo cansado –, haja folego! Respiração funda. Silêncio. Silêncio entrecortado pelo arrulhar das aves e o rumorejar das águas relinchando nas corredeiras. E por fim, a joia da coroa, a bela cascata ao alto, embalo de águas dançantes. E remansos com águas transparentes, próprias para um banho de rio.
André e Valdomir, antes da subida, nos alertaram: cuidado com as víboras, também vivem à beira d’água e detestam ser molestadas. Como estava frio, certamente ainda hibernavam, é o que deduzimos. Cláudio como bom mateiro, as detecta pelo faro. Melhor assim, com guia antenado. Tino de escoteiro.
Lembraram de uma incursão de técnicos do IBAMA por lá. Acamparam mais adiante, no topo do morro. Embora as advertências, subestimaram o alerta. Não deu outra, integrantes picados. Um Deus nos acuda, pois, soro antiofídico somente em Itapoá.
Retornando, a surpresa: colmeias de abelhas sem ferrão alocadas num rancho próximo do casarão. André dedica-se à meliponicultura. Fábrica caixas. Cláudio expert no assunto, enfatiza:
– Trata-se de um bom negócio – mel e colmeias -, desde que devidamente registrados na entidade licenciadora. Mais essa, questionam. Gargalhada geral. Põe sócio nisso. Todos, no entanto concordam: é questão de biossegurança, garantia de origem e de qualidade do produto.
Quanto ao casarão, em ruínas, clama por restauro. Muitas promessas e nada, lembram os irmãos. Habitado até 2010, agoniza. Telhado vergado. Cupim. Madeirame podre. Até quando resistira, uma incógnita.
Certamente, a saga do Saí carece de mais atenção por parte do patrimônio cultural. Afinal naquele recôndito pedaço de terra emoldurou-se um dia o sonho dos socialistas utópicos: Saint-Simon, Louis Blanc, Charles Fourier e Robert Owen. Fourier projetara um falanstério referência. Espécie de cidadela padrão, compreendendo 1800 indivíduos por unidade, onde tudo seria compartilhado. De proveito comum, portanto.
Infelizmente o projeto ruiu. Dispersaram os participantes. Aurélio Alves Ledoux, filho da Vila da Glória, foi um dos últimos moicanos a defender esse legado histórico. Benoit Mure, médico homeopata, ali fundou o primeiro instituto do gênero no Brasil. E Michel Derrion, empreendedor, um pouco mais a oeste, desenvolveu indústria de conservas de palmito, engenho de arroz e serraria, região de Barahas; daí, Garuva, antes de ser Garuva, era conhecida como São João do Palmital. Põe palmito por ali.
Eis, portanto, um senhor desafio: resgatar, preservar e promover esse rico legado cultural, a começar pela restauração do Casarão Backmeyer.
Joinville, 10 de setembro de 2022
Onévio Antonio Zabot
Engenheiro Agrônomo