Com trem não se brinca (Zabot)

COM TREM NÃO SE BRINCA

Estrada de ferro, trem… Vem-me à memória Porto União. – Papai anunciou: é a enchente. E realmente era. Água rolando pra todo lado; lá do alto, da estação, percebia-se a fúria das águas revoltas do rio Iguaçu. Menos nos trilhos. Prevenção da engenharia inglesa. Vim a saber disso bem mais tarde. A cena, porém, nunca mais fugiu de vista. Maria fumaça fumegando. Seguíamos de Maria Fumaça. Põe fumaça nisso.  Nas curvas, vento soprando, ardia os olhos. Fumaça e fuligem à solta.  Nas estações, pilhas de lenha. Muita lenha. Carregamentos às pressas. Lenhadores, homens fortes, feixes robustos. Refeito o estoque, partia a máquina fumegando. Raras eram as locomotivas a diesel, potentes e silenciosas.

E a largada, então, em Maringá, não há como esquecê-la.  Um circo inteiro em vagões dando bobeira por ali. Zebras listradas, elefantes, leões. Estes nada amistosos, abriam uma boca enorme, cheia de dentes. Uivos medonhos.

Estrada de ferro, estrada de mato. Trem segue lá suas lagartices, bufa nos fundões. Beco da Onça.  Beco de Mata. Fim de mundo. Hora dobrava-se como uma jararaca quase mordendo a cauda. E seguia, e chiava. Cuspia fogo. Matraquear incansável, rodados de ferro contra os trilhos. Tic, tac, tac, tic… papapa…papapa…!

O assento de madeira, desconfortável, único consolo.  Mesmo assim, cochilávamos. Mamãe, previdente, providenciara um acolchoado. Papai ia tranquilo, moendo a paisagem com olhos. Identificava árvores, e pelas árvores se a terra era boa ou ruim. Faro de roça nunca lhe faltou.

Por fim, Herval d’Oeste, a velha estação. Ufa! Terra de nossos avós, visita inesquecível. Até aí tudo bem. A volta, no embarque, não foi diferente a não ser a despedida. Acenos memoráveis. Lágrimas sentidas de mamãe, dos tios e dos avós. Papai, sangue-frio, falava do sítio. Saudades de chegar. Da lavoura de café, do gado.  Daquela viagem restou-me na memória a arte de serpentear ribanceiras, e a bronquite do mano Moacir, tosse chata da qual nunca mais se livrou direito.

Mais tarde, outra viagem memorável. De Santa Maria da boca do monte a Porto Alegre. Neste caso, para participar de um encontro de casas de estudante. Com o amigo Paulo Pires representávamos na capital gaúcha a moradia estudantil da UFSM, em Camobi. Compramos passagem de segunda, e viajamos no bar. Resultado:  pagar a diferença, pois ali era espaço de primeira, informaram.

Na volta, em Porto Alegre, um cochilo, quase perdemos o trem. Partia quando saímos à toda trilhos afora, agarrando-se às duras pena no último vagão.

De todas as lembranças, porém, a mais instigante ocorreu em Joinville. Avenida Getúlio Vargas, estação ferroviária, travessia de trem. Começo de tarde, no fusca da ACAREESC, sigo para a zona sul, área agrícola do Itinga. Motorista novo, inexperiente. Deparo com uma fila de carros, impaciente avanço atrevidamente. A ficha caí tarde: a locomotiva fungava no trilho, enquanto o cruzava. Vê-la de banda, um susto. Ferrolho ambulante – bigorna de listas amarelas -, por aquilo não esperava. E o buzinaço nas ventas, então!  Pé no fundo. Em tempo, num lance de ousado, escapuli-me. Ufa! por um triz. Tremem as pernas, o coração salta no peito. Adiante paro, respiro fundo. Em tempo agradeço: – Mamãe, obrigado por rezar por mim. Barbeiro que era, aquela não foi a primeira mancada, mas certamente a mais traumática.

A partir do episódio aprendi a respeitar cruzamentos de estrada de ferro. Saltava aos olhos a recomendação: antes de atravessar ferrovia – pare, olhe e escute.  Subitamente clareou o que era imperceptível.

Vez por outra, no trajeto de Jaraguá do Sul a São Francisco do Sul, o trem aparece nas horas mais inconvenientes, e cada vez mais alongado, vagões a esgotar a paciência. Mas, como com trem não se brinca:  melhor segurar as pontas.

 

Joinville, 21 de maio de 2020

Onévio Zabot

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