De degolas e churrascos
Seu berço foi o Rio Grande do Sul, terra de lideranças fortes, da oligarquia do charque lá das bandas da fronteira com o Uruguai, do ex-liberal e federalista Gaspar da Silveira Martins, terra dos Maragatos e dos Pica-Paus; terra do republicano Júlio de Castilhos, que enfrentou os homens de Martins com os mesmos requintes de violência que os dos inimigos federalistas. Revolução da Degola.
Deu-se em 1893-94 e passou à história como Revolução Federalista, nome duvidoso. Não foi nem revolução, nem federalista. O que ocorreu foi uma luta pelo poder no sentido de manter o status quo dos liberais do tempo da monarquia, que se viram de mãos vazias diante da meteórica ascensão dos republicanos em 1889 após o 15 de novembro; também não foi federalista, na concepção aceita e generalizada de federalismo. Os revoltosos, pelo contrário, propugnavam pela maior predominância do poder federal sobre o estadual, manifestando pendores para a centralização.
Amantes da peleja por natureza e cultura, as tropas, instigadas pelos caudilhos, ávidos de poder, na sua marcha passaram por Florianópolis, onde os igualmente descontentes federalistas catarinenses lhes deram guarida e até criaram um Governo Provisório da revolução.
Continuando a subir o Brasil, para subir ao poder, os peleadores gaúchos e alguns catarinenses marcaram ponto em Joinville no final de 1893, tumultuando a rotina germânica e weberiana da jovem cidadezinha. Sem heróis (que não os houve), restam os “causos”, assim tratados nesta crônica, mas que merecem uma interpretação não só histórica, mas antropológica e linguística. Frequentemente tais causos se relacionam com o choque cultural sentido pelos teuto-brasileiros ao depararem com as tropas gaúchas, de aspecto pitoresco às vistas dos joinvilenses, conforme relatou o bombeiro Alexandre Döhler.
Outro bombeiro, o comandante Felix Heinzelmann, era de opinião que as vestimentas davam um aspecto fantástico ao conjunto e as expressões do rosto poderiam servir de motivo para pinturas de quadros.
Não só as vestimentas e as feições causaram estranheza. O hábito do churrasco também os impressionou bastante. Diz Döhler que um dia, à noite, quando chegou uma tropa de bois para os homens do general federalista Gumercindo Saraiva (que haviam recusado feijão com linguiça, comida joinvilense), um dos bois que havia enveredado pelo acampamento foi morto e, “como feitiçaria tiraram-lhes o couro. Mal passaram dez minutos e já tinham soltado os quatro quartos, e quatro homens, cada um com um quarto no ombro, aproximaram-se das fogueiras. Após um quarto de hora nada mais se via do boi, que virara pedaços para churrasco. Nunca me esqueci desta cena [1].
Foi o primeiro contato do joinvilense com a cultura gaúcha. Cem anos se passaram. O choque amorteceu, os gaúchos refinaram seus jeitos e gostos e as roupas de suas prendas causam inveja a qualquer mulher vaidosa. Seus cavalos não são mais aqueles, roubados dos colonos. Em Joinville há dezenas de CTGs.
Temos que dar mão à palmatória: o cheirinho do churrasco que se espalha atualmente por Joinville nas sextas-feiras à noite faz esquecer os ressentimentos do passado, e comemora-se o início do fim de semana.
Rendamos graças ao tempo e à história: de degolas e churrascos, felizmente sobraram os últimos!
Memórias e reflexões – Esta crônica foi escrita em 1983 e publicada em 19 de novembro de 1993, no jornal A Notícia, de Joinville. Ela fará parte do livro “Opiniões, Memórias, Reflexões”, que reúne 50 artigos originais da autora, seguidos de memórias e reflexões sobre o mesmo texto. O livro será publicado no segundo semestre de 2019 .
[1] Alexandre Döhler: Álbum Histórico do Centenário de Joinville – 1851- 1951. Organizado. Joinville: Gráfica pela Sociedade Amigos de Joinville Mundial Limitada – Curitiba (PR), p.229.