Quem explica?

Complicado este Brasil. Seus problemas começaram num dito ano de 1500 do calendário gregoriano quando, já velho, foi tornado nascituro por um povo de além-mar. Há coisas que a história registra mas não explica. Por exemplo: tendo ele nascido naquele ano, sabe-se da mãe – a velha metrópole – mas não do pai. Os espanhóis Ojeda e Pinzón ou o português Cabral? E tem mais: o bebê foi planejado ou veio por acaso?

De qualquer forma, a criança, assumida pela mãe, portuguesa de boa cepa, foi batizada por Frei Henrique de Coimbra na paradisíaca praia que Vítor Meireles reinventou para celebrar a cerimônia, aliás, bastante prestigiada pelos nativos, que já achavam uma grande besteira aqueles homens do outro lado do mar usarem tantos panos nas partes pudendas. Tinha razão o índio que, a tudo assistindo do alto de uma árvore, profetizava: “Ih! Isso não vai dar certo!”. Já o nome, que de Vera  passou a Santa Cruz e afinal ficou sendo Brasil, indicava a “brasa” que seria sua história daí para a frente.

Além do nome, tem outra complicação: o local de nascimento. Porto Seguro? O historiador João Ribeiro conta que outro historiador, Varnhagen, possuindo o título de Visconde de Porto Seguro, definira aquele local para valorizar sua honraria. Bom, mas se o menino não nasceu em Porto Seguro, onde foi então? Baía Cabrália? Para todos os efeitos, nesse ano dos 500, a mídia baiana não se cansa de proclamar: foi aqui que nasceu o Brasil!

Sem pai definido, três nomes, local de nascimento duvidoso, mãe dominadora e distante, o futuro do garoto não parecia dos mais promissores, a começar pela certidão de batismo, lavrada pelo escrivão-mor que, ao descobrir os salutares efeitos de longas “caminhadas”, exercitava-se, desse modo, a passos largos em direção ao nepotismo quando pedia a el-rei “quer por me fazer singular mercê mande vir da ilha de São José a Jorge Osório, meu genro”.

Mamãe lusa, desde o início preocupou-se em defender o menino das índias, peladinhas e bronzeadas, verdadeira tentação e precursoras do fio dental. E que, para complicar, não disfarçavam suas preferências pelos guapos lusos, mais bem dotados do que os machos da sua raça, os quais, afinal, não tinham culpa da sua origem (dizem) oriental. Mamãe lusa resolveu, então, proteger o filhinho de tais apelos pagãos. E assim, sob os auspícios da Igreja, chegaram as orfãzinhas de Lisboa. Deram origem a numerosa prole e ficaram na história como heroicas matriarcas da aristocracia nordestina, que, aliás, não sei por quê, faz questão de apagá-las da sua árvore genealógica.

Alguns senhores, solidários e ambiciosos, aceitaram a missão de representar o lado paterno do menino. Foi assim que Dom Fernão de Noronha recebeu a incumbência de cuidar da criança por três anos, até que ele “pudesse andar com as próprias pernas”. Mas não puderam evitar que, atraídos pelos dotes do menino, os franceses também quisessem pajeá-lo. E lá vinha francês, que ficava amigo de índio e de índia (como era gostoso o meu francês!), ameaçando a formação psicológica do pequeno Brasil, que começava, pobrezinho, a ficar confuso. De onde vim, pra onde vou, o que eu sou?

Mamãe lusa aconselha-se com seu padre confessor, que lhe recomenda Dom Martim Afonso de Souza, “homem bom”, como se dizia, para uma presença mais efetiva ao lado do menino, evitando-se assim que saísse prejudicado na formação da sua identidade. E veio a família Souza: Martim, o irmão Pero e o filho Lopo, o qual acabou conhecendo um tal de Diogo Álvarez lá pelas bandas da Baía de Todos os Santos, onde era chamado de Caramuru, pois conquistara a amizade dos índios graças aos minguados tiros de uma espingarda high tech europeia. Afinal, em terra de índio, naquele tempo, quem dava tiro virava rei. Virou príncipe quando casou com a filha do cacique, a bela Paraguaçu, “de cor tão alva como a branca neve, e donde não é neve é de rosa”, assim descrita no poema[1] épico-racista-eurocêntrico de Santa Rita Durão.

Os Souza foram fazendo amigos pela costa afora, entre eles João Ramalho, patriarca de extensa prole com a índia Bartira. Passava o tempo a consultar o tarô, na tentativa de localizar a linha de Tordesilhas e aconselhar-se como fazer para chegar ao interior, pois lá estavam o ouro e as pedrinhas cristalinas e coloridas que tanto fascinavam o seu povo.

Antes disso, o menino Brasil enfrentou alguns problemas de relacionamento com a mamãe lusa. Eu penso que a coisa toda teve início quando os índios resolveram saborear o bispo Sardinha, não se sabe se na grelha ou ao molho pardo. Mas dizem que o banquete, embora sem o requinte grego à moda de Platão, alegrou a noite da indiarada.

Tem o causo, ainda, daquele cidadão mineiro que, tendo aprendido a tirar dentes, não se contentou com o ofício e inventou de instalar a República Independente do Brasil. Pobre homem. Ousar separar o filho da dominadora mãe! Pagou caro! Foi enforcado e esquartejado a mando de Dona Maria, a Louca, mãe de Dom João VI, que é pai de Dom Pedro I e avô do II e nem sei o que desses atuais príncipes, virtuais herdeiros do trono brasileiro. Dois deles sentem-se tão culpados pelo ato da sua maluca ancestral que até fizeram voto de castidade.

Um tempo depois veio a crise. O mocinho Brasil, infernizado pela neurose possessiva da supermãe, não aguentou e deu o famoso grito: independência ou morte! Iniciava-se o movimento da Juventude Transviada.

Com o passar dos anos, eis que surge nova crise. Não sabia o que escolher para seu futuro: Monarquia ou República? E a Princesa Isabel, num ato de extremo altruísmo, aboliu a escravidão e logo logo ele achou que deveria modernizar-se: sou República e fim de papo! Dizem que a coisa foi tão repentina que o povo a tudo assistiu bestializado.

Do outro lado, mamãe lusa tentava recuperar os sentimentos edipianos do filho, mas este já se encantara por uma tia velha, a veneranda Grã-Bretanha e, inspirado em Almodóvar, não cansava de gritar: “Joguem a mamãe do trem!”.

Em seguida, Tio Sam apiedou-se do menino, então já um adolescente, que por ele se apaixonou, vislumbrando, quem sabe, o pai que nunca tivera. De tanta admiração, passou a imitá-lo. A cartola não lhe cai muito bem, nem a casaca. Mas ele se acha o máximo e não sai de Miami e Nova York. Afinal, parece que o menino indeciso finalmente encontrou sua identidade…

 

Memórias e reflexões – Esta crônica foi publicada em 4 de abril de 1983, no jornal A Notícia, de Joinville. Ela fará parte do livro “Opiniões, Memórias, Reflexões”, que reúne 50 artigos originais da autora, seguidos de memórias e reflexões sobre o mesmo texto . O livro será publicado no segundo semestre de 2019 .

[1]  Caramuru (disponível em: <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/caramuru.pdf>).

 

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