Desaparecer é pior que morrer (Cristina)

Desaparecer é pior que morrer

Por Maria Cristina Dias*

“Como uma pessoa desaparece na década 30 e não deixa rastro… não me conformo”, dizia-me um cliente que tenta montar o quebra-cabeça de sua própria história, mas esbarra no mistério sobre o paradeiro – e o fim – de um antepassado. Passaram-se quase 90 anos que o bisavô recebeu um bilhete misterioso e foi embora sem dizer para onde ia ou quando voltava. Sem dar justificativas ou explicações – sem dizer adeus.

A vida seguiu como sempre segue, com um dia depois do outro, com o tempo trabalhando para acomodar as angústias e curar as feridas. Mas daqui a pouco faz um século, todas as pessoas que o conheceram já morreram (ele mesmo, pelo tempo, já morreu em algum lugar) e o peso daquela ausência continua. Persiste como um fantasma sobre os descendentes, sobre a terceira geração que não consegue fechar uma parte importante de sua própria história. Vai seguir adiante, sem dúvidas. Um passado sempre em aberto, à espera de explicações.

Vejo as fotos de pessoas desaparecidas nos jornais, na internet, e fico a imaginar o que se passa na cabeça de quem fica. Imagine ver um filho, um pai, uma pessoa amada sair pela porta e esperar, em vão, pelo retorno. Um dia, dois dias, um mês… as buscas cessam, as esperanças de reencontro vão se acabando e… nada. Será que está vivo? Será que está bem? Será que sofre ou é feliz? O que será que houve? São perguntas que, para muitos, nunca serão respondidas. São vazios que se cristalizam na alma dos que esperam e deixam suas marcas.

E o que será que se passa na cabeça dos que se foram? Não dos que morreram (estes, de alguma forma, encontraram um fim, embora a família não saiba qual), mas daqueles que estão vivos e, por um motivo ou por outro, por escolha ou não (muitos, muitos, sem escolha), deixaram para trás um passado, uma história, uma vida. Será que o antepassado do meu cliente algum dia pensou em enviar uma carta e perguntar pelos filhos pequenos? Será que um dia pensou em olhar para trás? Nunca ninguém irá saber.

Um dia, há muitos anos, meu avô já velhinho saiu de casa de manhã cedo. Algum tempo antes ele havia sofrido um “derrame” (como se chamavam os AVCs naqueles dias) e, embora não houvesse sequelas aparentes, algo nele havia mudado para sempre. Algo quase indefinível que só nos demos conta com o passar dos dias, dos meses, dos anos.

Sempre ativo, ele costumava andar pelo bairro, no subúrbio do Rio de Janeiro, fazer compras, falar com as pessoas, ajudar a quem precisasse com seu coração sempre aberto. Mas naquele dia custou a voltar. Uma hora, um carro desconhecido parou diante de casa, trazendo ele.

De alguma forma, a mente de meu avô o deixou na mão e ele se perdeu no bairro em que morava há anos, onde conhecia cada rua, cada esquina. Sem conseguir encontrar o caminho de volta, começou a andar a esmo e foi parar às margens da avenida Brasil, uma via movimentada do Rio, perigosa já naqueles tempos. Lá, uma pessoa percebeu que havia algo errado com aquele velhinho que vagava. Perguntou o nome e o endereço – e ele lembrou. Com isso, pôde voltar para casa. Abençoada a pessoa que ninguém sabe sequer o nome.

Eu era adolescente, mas lembro bem da sensação de alívio, apreensão, medo e sei lá quantos sentimentos variados tomaram conta de todos. Quantas pessoas desaparecem do nada e nunca mais são achadas? Quantas crianças, quantos velhinhos? E quantos saem de casa intencionalmente com o objetivo, sei lá, de fugir de sua realidade ou por outro motivo qualquer, e nunca mais retornam?

Desaparecer é pior que morrer. A morte encerra de forma absoluta a vida, é o nosso destino certo, para onde caminhamos. Ela traz em si a tristeza pelo momento, mas também a certeza de que o fim chegou, que não há mais nada a fazer. É ponto final indiscutível. A morte não deixa dúvidas. Acabou. Fica o luto, que tem um tempo de cura e depois também acaba (ou não, mas isso é uma outra história). Fica a saudade, ficam as lembranças.

Mas o desaparecimento é uma pergunta sem resposta. São reticências sempre em aberto. É um eterno “e se…”, que pode atravessar gerações e marcar de forma inexorável os valores de uma família inteira, as suas convicções, a sua forma de enxergar o mundo. É a ausência presente que dói sem perspectiva de alívio. É uma morte em vida.

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