Discurso e poesia (Irmã Clea)
DISCURSO E POESIA
Irmã Cléa
Discurso de Paraninfa
É noite, mas eu vejo uma grande luz iluminando esta sala, pondo cintilações de dia nos olhos, fulgurações de sol nos corações e nos semblantes.
Vejo diante de mim, quase a intimidar-me, uma representação generosa da sociedade de Curitiba, que vem aplaudir uma vitória. E ninguém, que sabe ouvir nas entrelinhas, deixa de reconhecer que os aplausos vêm mais significativos e mais generosos das mãos que já embalaram o berço em que dormia essa esperança, hoje “vestida de azul e festa”.
E nessas arquibancadas do triunfo, sob o disfarce de outro uniforme, dispostas em outra ordem de fileiras, eu reconheço 36 rostos muito familiares, eu sintonizo com 36 pares de olhos que de há muito são a minha paisagem de cada dia.
E vós vedes, senhoras e senhores, ao lado desta Mesa de Honra que tão dignamente preside a esta Cerimônia de Gala, a humilde e obscura professora, que uma grande generosidade e um grande carinho consagraram paraninfa de suas alunas nesta noite.
Permito-me ainda apontar para a pródiga presença das flores, indispensáveis à harmonia do quadro que nossos olhos contemplam, testemunhas silenciosas que são dos grandes momentos de emoção humana.
E assim, feito o reconhecimento do terreno, feito o levantamento inicial do ambiente, eis-nos localizados e em condições de proceder à última aula desse ciclo de estudo e formação que ora se conclui.
Minhas caríssimas alunas, afilhadas desta noite:
Se não vos bastaram quatro anos para ouvir a palavra descolorida e pobre da mestra que a Providência Divina colocou ao vosso lado, nessa etapa final de vosso Curso, no Colégio que acabou de diplomar-vos, se a generosidade de vossos corações me pede, em público, esta última aula, aqui estou para repetir-vos, na emoção da despedida, o que vos dizia em nosso primeiro encontro, há quatro anos: “É preciso estar onde somos chamados. É preciso responder ‘Presente’, onde o nosso nome é um compromisso”.
Acabais de ser chamadas, uma última vez, em ordem alfabética, assim como os vossos nomes constam dos livros de registro e matrícula. E respondestes “Presente” – e por isso agora não estão vazias as mãos que ontem empunhavam o livro e a caneta.
Ontem, o vosso nome na chamada exigia a vossa presença no trabalho rotineiro e sem brilho. Hoje, a felicidade deste “Presente”, que vos foi dado responder, colocou em vossas mãos um troféu e em vossa fronte uma glória. Amanhã, a vossa resposta à chamada da vida talvez vos faça calos nas mãos, talvez vos arranque lágrimas aos olhos que hoje sorriem, talvez vos ponha nos ombros uma cruz pesada.
E eu vos repito: é preciso responder “Presente”. É preciso estar onde o vosso nome for chamado. É preciso não fugir à responsabilidade do compromisso com a vida, que algema a nossa pusilanimidade, o nosso egoísmo, a nossa covardia.
Mas eu vinha dizer-vos sobretudo, caríssimas afilhadas, na aula singular desta noite, uma palavra de alegria e de beleza. Na voz da poesia, eu quis consagrar a vossa despedida com a “mensagem de beleza”, inspirada no conhecido verso do poeta inglês: “Toda beleza é uma alegria eterna”.
A um olhar desatento e superficial poderia parecer inadequado falar em termos de encantamento, quando a realidade da vida nos exige tanta seriedade, quando os termos-chave são “crise” e “problemas” e “revolução”, quando uma posição privilegiada nos confere, além disso, o direito de dizer palavras de peso.
Numa das mais belas páginas do Evangelho, que nos é particularmente cara, porque a chamamos de “evangelho da Divina Providência”, encontramos também o Mestre Divino diante do problema real e angustiante da pobreza humana – o problema da fome e o problema da nudez, que, em última análise, geram todas as crises e revoluções no mundo. “Que havemos de comer e que havemos de vestir?” – eram perguntas da angústia de então como o são hoje também.
E a resposta da pedagogia divina foram dois versos de inexcedível beleza: “Olhai as aves do céu! Olhai as flores do campo!”
Porque Ele, o Poeta divino, sabe que não escreveu em vão o poema da música alada no espaço, o poema do perfume matizado de mil cores nos campos e nos jardins.
Se é preciso que encaremos as contingências laboriosas do nosso dever de cada dia com a viril coragem de quem sabe que não deu bastante enquanto não deu tudo, também é preciso que as constantes preocupações materiais não nos venham amordaçar a alma e enevoar a visão do espírito. É preciso que defendamos do embotamento do desencanto e da indiferença a sensibilidade jovem do nosso coração faminto de alegria e de beleza, alavancas poderosas dos caminhos de ascensão.
Eu vos dizia, numa hora feliz: todos somos famintos de rosas – do seu perfume e da sua mensagem. Sim, porque cremos na vida, que é uma floração de beleza, em mil tons e rescendências sutis. Na vida, em que os espinhos mais atrevidos e injustificáveis não impedem o orvalhado amanhecer de um botão que desabrocha. Na vida, que é bela, porque ainda, à tarde, as pétalas caídas formam um tapete de esperança em torno da roseira que voltará a ser mãe.
Já compreendestes, nesta altura, minhas queridas afilhadas, que não é diferente a minha doutrina de hoje da que sempre me ouvistes na austeridade da sala de aula. Não é de uma beleza fútil que vos falo: não é a alegria fácil, não é um encantamento inconsequente e pueril que exalto. Porque o Mestre que apontou as aves do céu e as flores do campo aos que choravam por pão e agasalho, multiplicou pães e encheu barcas de peixes em demasia – e ensinou a doutrina de dar a segunda túnica, a supérflua, ao irmão que treme de frio.
O Poeta que decantou a beleza do traje branco dos lírios e a felicidade despreocupada das aves que confiam na sábia Providência do Pai, não furtou o rosto ao gesto traidor de um amigo e não recusou os ombros à cruz que devia esmagar-lhe a vida e a honra. Ele dissera o seu grande “Presente”, o seu “Sim” irreversível à vocação de sua vida.
É nessa beleza das horas transcendentes da vida, quando desabrocha em plena luz a personalidade humana capaz de heroísmos silenciosos e ocultos, heroísmos vestidos do desbotado uniforme diário, porque em traje de gala ofenderiam o pudor – é nessa beleza de força e esforço, de luta e conquista, de trabalho e perseverança, de amor e de perdão que eu penso, quando desejo que leveis gravada nas cordas mais sensíveis da vossa harpa interior “a sinfonia desse instante belo, que concretiza um sonho, um grande anelo”.
Eu não esqueci que esta deve ser uma última aula para quem, já agora, está acreditada, perante a sociedade, para exercer o magistério. Sois professoras – assim o diz esse diploma que a vossa mão afaga feliz.
Sois professoras – vocação que tanto envolve de devotamento, de doação, de silenciosa esperança no desabrochar da semente. O mestre é o arquiteto do futuro. As delicadas alegrias de amizade e gratidão que os alunos lhe preparam, e que tanto lhe sensibilizam a alma, não lhe serão jamais compensação do seu trabalho de fé. O mestre não planta para colher. Outros colherão. A vida colherá, quando já se tiver feito silêncio em torno do seu nome obscuro.
Se o mestre souber estar presente, com essa presença benfazeja, que é feita de bondade, de compreensão e firmeza, a colheita do futuro verá o seu nome esculpido em mármores de gratidão.
Ide para as vossas escolas, professoras de amanhã. Levai a mensagem que o vosso Colégio da Divina Providência vos plantou na alma, desde a vossa infância. É a mais bela retribuição que o carinho do vosso coração poderá reservar para aqueles que caminharam ao vosso lado, como mestres, em todas as etapas de vossa formação.
Ide. Atrás de vós fecha-se o portão amigo, que tantas vezes vos viu entrar temerosas e preocupadas com lições menos bem sabidas, e vos viu sair alvoroçadas, depois de um cansativo período de trabalho. O Colégio vos chama agora de ex-alunas, os mestres vos chamam de colegas, as pequeninas colegas de ontem, vestindo o uniforme que já abandonastes, talvez vos chamem, amanhã, de professoras.
Mas há alguém que não vos chamará diferente nesta noite, nem amanhã, nem nunca. Alguém que mais que o vosso Colégio, mais que os vossos mestres, mais que a vossa Paraninfa, vibra convosco nesta hora de beleza e encantamento. Aí estão os vossos pais, orgulhosos de vós, imaginando ainda ser um sonho aquela realidade que sonharam um dia ao pé do vosso berço: minha filha será alguém na vida. Nossa filha vencerá galhardamente, porque nós, na retaguarda, nos sacrificaremos por ela.
Pais amigos, orgulhai-vos, sim, da filha que vos sorri do alto desse palco de luz – mas orgulhai-vos sobretudo de vós mesmos. Orgulhai-vos do vosso anônimo sacrifício, que é ele o pedestal do triunfo de vossa filha.
O Colégio vô-la devolve nesta hora. Mas a vida, a sociedade, a vocação que ela abraçou vo-la disputarão sempre de novo. Sede sempre generosos, dai-a sempre, porque é assim que pagais a Deus o tributo da felicidade que só um coração de pai e de mãe sabem sentir em momentos como este.
Adeus, meu 3º. Normal. Não fujo a esta palavra, porque ela não é triste, como alguns pretendem. É a mais bela palavra de despedida. É a palavra que, como nenhuma outra, encerra em si o condão de nos manter unidos. Porque é uma palavra de fé. Toda a nossa vida se resume em ir – a Deus. Se vale para mim o “a Deus”, se vale para vós, amigas que partis, se vale para nós todos, então nunca haverá separação, porque é comum o caminho que trilhamos em demanda da última chamada, então somos todos inseparáveis companheiros de jornada no belo caminho da vida, em que, ao compasso de um grande amor, marchamos juntos – a Deus!
A mensagem da beleza
Por que vestir de azul e festa
Quem sai a trabalhar?
Que significa esse momento de poesia,
Se todos que encontramos já na estrada
Que vamos percorrer,
Nos vêm dizer
Que é prosaica e solitária essa jornada?
Se nos aguarda a escola
– E dela o mundo tanto espera –
Se nos aguarda o lar
– E nele a vida quer-nos fortes –
Se somos investidas do mandato
De em árduo campo mourejar.
Por que o encantamento
Dessa inútil hora de beleza?
Que validade tem, no saldo do orçamento,
O brilho das estrelas?
Qual a mensagem das inúteis coisas belas,
Filigranas no painel da vida?
Por que a mão do Senhor
Que no espaço jogou
(Ó seriedade transcendente de um Deus a trabalhar!)
Esses mundos em órbitas seguras
(Misteriosos mundos que ninguém jamais contou…)
Por que essa mão
Se comprazeu em brincar,
Rendando as fraldas das montanhas
De flores
Multicores?
Tingindo de pudor
O berço do sol no horizonte?
E ensinando à fonte
Meneios caprichosos em direção ao mar?
Compondo partituras complicadas,
Ousadas,
Para o coral dos pássaros inúteis,
Que simplesmente gostam de cantar?
Deus perdeu seu tempo em coisas fúteis?
Por que o homem
(Incorrigível plagiador de Deus…)
Que dele herdou
Não só a filiação para o poder amar,
Também o instinto de criar,
Enquanto sonda os céus em busca do mistério,
Voando em cápsulas incríveis
Que o seu engenho arquitetou –
Por que esse homem sério
Constrói um pequenino e frágil avião
Que será destroços e alegria
Na pequenina mão
Do seu filhinho que pediu brinquedo?
E o sábio dedo
Que desenhou o cérebro eletrônico
Desperdiça um gesto inútil,
Belo,
Nos caracóis sedosos do cabelo
Que, em desalinho,
Se faz moldura do sorriso de um filhinho…
Mistério da beleza
Dos gestos e das horas!
De todos os gestos
E todas as horas!
Beleza do agora num palco de gala
Em noite de poesia!
Beleza da acanhada sala
Onde a mestra sorri um sorriso de mãe
Para o tímido filho de outra mulher!
Beleza da longa monotonia
Que espera a semente no solo crescer!
Beleza da hora silenciosa
Em que floriu a rosa
Que a nossa mão vai dar ou receber!
Clarão de alegria que a vida governa,
Porque toda beleza é uma alegria eterna!