Do lado certo do incorreto
Era bonachão. Do tipo gordo, mas não enorme. Pançudo. Com aquele jeito de deboche característico dos bonachões apadrinhados pelo poderio econômico, de berço. Estava no auge da carreira, ou talvez tenha passado um pouco. Contava lá com seus cinquenta e tantos, os tantos mais aproximando-se dos sessenta do que do início dos cinquenta, mas ainda contando com boa saúde e uma vida fácil sob qualquer ponto de vista.
Gozava de alto cargo público no escalão da miserabilidade brasileira daquela época, em que a quase a totalidade figurava entre os pobres e os miseráveis. Não era destes nem de perto, pelo contrário, o berço reluzente do amarelo metal determinava-lhe destino graúdo. E não fora diferente. Não haveria de sê-lo. O pai era grande produtor de café no interior e, cedo, tratou-lhe de mandar à capital para estudar Direito. E assim o fez, sagrando-se juiz sem não muito esforço.
A vida era-lhe servido do que tinha de melhor: de alimentação à vestuário, passando por bens dos mais variados e viagens internacionais. A fanfarronice da juventude dera lugar à um juiz respeitado, mas sem muita projeção entre seus pares. Fazia o que tinha de fazer, nada mais que aquilo.
Sentava agora ao lado dos filhos, o mais velho seguindo-lhe no mesmo caminho e o mais novo ainda em época de secundarista. A sala de estar, ordenhada de luxo, sustentava um lustre que pertencera ao avô, mas que em nada combinara com o recinto. Exigência do bonachão, inconformismo da esposa.
– Eu acredito que você vai se arrepender – disse em direção ao mais velho, rompendo o silêncio e fazendo ambos erguerem a cabeça.
– Por que?
– A vida de advogado não é fácil… veja, não há qualquer segurança, você não sabe o quanto ganha – se é que ganha alguma coisa no mês. Pensa um pouco, você é inteligente, novo ainda, e tem tudo pela frente.
– Mas pai… é justamente isso. Eu quero essa emoção, essa aventura. Vida de juiz é legal, você faz coisas legais pelos outros, tem um ótimo salário, mas… não tem essa coisa de dizer “esse lugar é meu e aqui eu mando”, como tem num escritório. Além do mais, o que tem de errado? O pai vai escolher meu destino agora?
– Não é isso. Veja, eu tenho mais experiência de vida, sei como funciona, e só quero teu bem, assim como qualquer pai. Eu acho que você vai se arrepender, mas você que sabe. Pensa bem…
O silêncio voltou a imperar. O caçula que outrora levantou a cabeça pela interrupção abrupta do silêncio logo em seguida já estava novamente lendo seu livro.
Foram chamados à jantar.
Não era a primeira vez que discutiam por esse assunto. O pai querendo a continuidade de seu sobrenome no seio da magistratura e o jovem advogado abrindo seu escritório em endereço renomado, de propriedade – obviamente – da família do pai.
E não seria a primeira e nem a última discussão. Assim seguiu-se por algum tempo, até a instalação dos móveis, a feitura dos cartões de visita, a compra do maquinário, contratação de secretária e, enfim, a inauguração (à grande pompa) do renomado escritório Natal Filho.
Vários amigos compareceram, dos cabelos ao vento aos cabelos grisalhos, das amigas estonteantes do filho aos casais de amigos do pai. Notas em jornal, publicações em algumas revistas especializadas, colunismo social, corte de faixa para a abertura da porta, enfim, tudo o que condizia com a abertura de um renomado escritório que, sabia-se, tinha o dedo do pai por trás. A mão, melhor dizendo.
Segunda-feira. Oito horas.
A abertura simbólica no dia da inauguração deu lugar ao cotidiano. Nada para fazer, nenhum cliente. O sorriso contínuo da secretária impecável. Nenhuma alma aparece e nem apareceria por longo tempo. Iria atrás de clientes, de casos. A empolgação ainda lhe tomava conta. E assim foi por meses.
Aos poucos a engrenagem começou a funcionar e funcionaria cada vez melhor, com clientes indicados por amigos, pelo pai, por seus próprios méritos (por que não?) e passaram-se cinco anos como se passam cinco horas.
O garoto, agora advogado já conhecido na comarca, sustentava-se e a saída definitiva de casa era outro marco em sua vida que, inevitavelmente, acontecera. A essa altura o pai já confiava mais em sua capacidade e sabia que o destino do garoto – do seu garoto! – estava traçado e nada iria lhe voltar atrás. Como pai sempre torcera por seu sucesso, ainda que achava melhor que fosse juiz. Mas não era ruim ser advogado, tinha coisa pior.
Certo dia, numa viagem profissional, seu destino mudaria completamente. Seu carro importado, que “herdara” do pai e já com um pouco de uso, passados cinco ou seis anos desde a compra na concessionária, revelava-se à 140 km/h como sempre fazia. Ora, era um veículo seguro, de renomada marca alemã e que, dadas as condições da estrada e sua perícia como motorista, não via o advogado perigo algum.
O sol raiava ainda nas primeiras horas da manhã. A estrada estava quase vazia, à exceção do caminhão que se aproximava cada vez mais à sua frente e, sendo uma reta e já embalado, olhou rapidamente pelo retrovisor e à sua frente, sinalizando para a conversão da ultrapassagem.
Um carro apareceu em direção contrária. Freou. Apagou.
Não se lembrava de muita coisa. Acordara no hospital, logo em seguida, com total noção de tempo e espaço. Do que recordara era o suficiente para sua defesa – sim, já pensava na ação judicial que viria. Era o suficiente.
Das consequências normais para tais casos, como surpresa e flagrante desespero dos pais, até a alta médica, etc, fora questão de um dia apenas. Saíra do hospital pela porta dos fundos, arranjado pelo seu pai. Não perguntou porquê.
Não foi levado para seu apartamento, acharam melhor passar pelo menos aquele dia na casa dos pais. E assim rumaram, até a entrada principal, quando viu grande aglomeração de pessoas, com carros da imprensa. Eram repórteres.
Queria saber o que houve.
– O que que houve? O que tá acontecendo? Por que estão aqui? O que que eu fiz?
Os pais calaram-se e os vidros escuros do outro importado esconderam a todos com segurança. O pai limitou-se a dizer que em casa conversariam.
Dito e feito. Mal abriram a porta e já iniciou-se a discussão:
– Tu tem ideia do que tu fez? Tu matou uma pessoa! Tu matou porque tu estava correndo. E a gente cansa de te dizer isso. Cansa de dizer para não correr, mas não, tu acha que não tem problema. Não tem? Não tem? Olha aí agora. Como vai ficar a tua vida? Como vai ficar a tua carreira? E a minha, acha que isso não influencia na minha carreira?
– O pai só pensa na tua carreira, né? Só isso. Mas não tem nada a ver, eu me viro. Não se preocupa. Não vou te manchar, não. Não vou te envolver.
– Ah, não vai? E o que são esses repórteres na frente da minha casa? Da minha? E não da tua…
– Eu vou lá falar com eles. Vou me defender.
– Não, não. Tu é louco, guri? Eles vão te massacrar. Deixa assim, se defenda no processo e pronto. Logo eles vão esquecer.
– Pai, é a minha carreira. A minha vida. Preciso me defender. Só porque eu estava correndo não quer dizer que sou culpado.
– Claro que é.
– Claro que não! – retrucou o advogado.
A mãe interviu. O caçula separou ambos e acalmaram-se todos. Ligaram a televisão para se distrair. Alguns canais falavam do incidente. Pediu para ver.
– Deixa eu ver. Deixa eu ver…
O acidente matou o motorista. Um senhor de meia idade, divorciado e com dois filhos já crescidos. A entrevista com o policial rodoviário revelava forte tendência a condenar o advogado. Não importa que foi o outro motorista que adentrou na rodovia sem sinalizar, não observando a manobra de ultrapassagem. Não importa. Nada importa. Duas coisas importavam: a morte dele e a velocidade do carro importado. Importado, faziam questão de frisar. “Veículo de luxo”. Besteira. Qualquer um que entendia um mínimo de carros sabia que não valia o preço de um carro médio novo. Mas a imprensa fazia questão de martelá-lo com essas questões.
Veículo importado. Carro de luxo. Alta velocidade. Manobra arriscada. Pai de família. Dois filhos. Imagem dos filhos chorando. Imagem do local do acidente. Imagem, com close, da marca do carro no capô. Volta para a repórter. Policial mostrando a placa de velocidade no local. 100 km/h. Perigos da velocidade alta. Imprudência. Falecido pobrezinho. Inocente. Pai juiz. Advogado de renome. Fotos de festas em redes sociais. Veículo importado. Luxuoso. Fotos de felicidade. Viagens. Comentarista da televisão acabando com qualquer chance de defesa.
Não tinha defesa.
O martelo fincava cada prego com mais força em sua cabeça.
A cada batia uma dor aguda e infinita lhe fazia quase perder os sentidos.
Ou ele iria para a imprensa defender-se ou, se deixasse pelo julgamento da sociedade (leia-se mídia) já estava condenado.
Sem pensar muito, saiu correndo até a porta. Os pais tentaram impedir. A empregada viu-o sair voando pela porta. O irmão só olhou.
O caminhar do advogado revelava-se um tanto quanto lento. Não pensaria no que iria falar. Falaria o que lhe perguntassem e pronto. Aquele momento seria ímpar em sua vida. Não saberia sequer o que ocorreria depois. Se continuaria com o escritório, se mudaria de país até que as coisas se acalmassem, se, se, se.
Na medida em que se aproximava as câmeras iam se posicionando, os flashes iam tornando-se cada vez mais rápidos e uma forte iluminação sobre seu rosto fazia-lhe desviar o olhar. Chegou ao portão e uma enxurrada de perguntas lhe foram despejadas. Resolveu aquietar-se e assim ficou, até que os repórteres pararam e se entreolharam. O rapaz, apesar da pouca idade, era de uma sabedoria pouco vista para sua juventude e, com perspicácia, falou mansamente que iria responder a todas as perguntas, uma a uma, virando-se para a câmera de uma emissora, acalmou aos repórteres, eis que todos teriam sua vez.
– Em primeiro lugar, quero pedir desculpas a família e à minha família…
– Você está arrependido? – perguntou uma das repórteres.
– Não diria arrependido, pois ainda não me inteirei sobre o acidente, essas coisas. Mas claro que fico chateado porque uma pessoa faleceu.
– Como foi o acidente? – outra repórter logo questiona.
– Eu estava ultrapassando um caminhão e de repente um veículo entrou na rodovia, sem ver que eu estava ultrapassando. Tentei frear mas não deu e acabamos batendo de frente e não lembro de mais nada. Só acordei no hospital.
– Você estava acima da velocidade? – outra repórter dispara.
– Sim, estava.
Um silêncio se fez imergir e logo uma outra repórter indaga:
– Sabe a que velocidade?
– Em torno de 140 km/h a 150km/h – responde conscientemente o advogado.
– Mas o senhor é advogado, filho de juiz… não sabe que é errado correr tanto?
– Eu não considero isso correr tanto, como você fala…
– Mas a imprudência… – abruptamente corta uma outra repórter, já sendo interrompida pelo advogado:
– Gente, a imprudência, a meu ver, nada tem a ver com velocidade. Se eu corro em alta velocidade é porque me sinto preparado, porque estou num carro preparado com alta tecnologia e porque a estrada está em boas condições. Veja, eu não tive culpa do acidente. Não me considero culpado nem um pouco. O fato de correr a essa velocidade não quer dizer que sou imprudente. Isso é publicidade oficial do governo, que quer imputar as más condições das estradas, de um modo geral, sem falar que são bem malfeitas, para que as pessoas sintam-se culpadas. Se eu estivesse num Fusca, por exemplo, não passaria de 60 km/h, mesmo que a rodovia me permitisse andar a 100 km/h. Qual a diferença? Qual é mais inseguro, mais imprudente? O Fusca ou eu numa BMW? Infelizmente, o Estado brasileiro corta “por baixo”, ou seja, se baseia na velocidade dos menores e não dos maiores, na capacidade dos menores e não dos maiores. Se numa rodovia fosse permitido andar a 150 km/h, não necessariamente as pessoas precisam andar a essa velocidade. Nem o Fusca chegaria nisso. Mas isso não penalizaria quem quer andar a 150 km/h, quem pode e quem tem condições e competência para andar. Não é a velocidade que mata, é a imprudência. E são coisas totalmente distintas. É não saber ultrapassar, é não sinalizar seus atos, é não saber antecipar situações de perigo. Veja, se eu estivesse nesse acidente com um Fusca a 100 km/h, ou seja, dentro da velocidade permitida, portanto, eu também teria batido e, digo mais, as consequências seriam as mesmas ou piores. Por que não se vê gente em carro importado morrendo? Só em carro popular? Porque carros populares são malfeitos, com a conivência do Estado brasileiro. Mas o governo quer o povão andando de carro e não reclamando de andar de ônibus, fazendo propaganda disso e dizendo que existe ascensão social. Mas por outro lado, com isso pessoas despreparadas, em vários sentidos, andam por aí e cometem imprudências. Por isso defendo que a velocidade tem que parar de ser vista como a vilã. A velocidade imposta pelo governo, da forma como está, só serve para uma coisa: arrecadação. Arrecadar sempre foi a palavra de ordem quanto se trata de trânsito. Alterando a velocidade nas rodovias para 140 km/h, 150 km/h, pouquíssimos irão passar disso, seja por insegurança pessoal, seja porque seus carros não têm condições para tal. Mas o principal: o governo irá perder bilhões de reais. Porque a maioria realmente não vai passar disso. Vai andar entre 100 km/h e 120 km/h. E então, o que o governo faz? Corta para baixo a velocidade, a 100 km/h, penalizando quem tem totais condições de andar a mais que isso e com isso, consegue o duplo efeito de arrecadar bilhões de reais em multa e criar uma situação irreal de ascensão social em que todos possuem carros, ainda que populares.
Acabou juiz. De uma sentença só.