Doutor João Solstício Pedreira

A pilha de ações judiciais a se fazer acumulava-se na mesa do novo advogado novo. E já fazia algum tempo que estava lá, aguardando por um impulso. Como não se tratava de sua área, mas de outra que colega mais velha tinha-lhe deixando de herança, ali ficou por meses. Até que resolveu dar cabo naquilo.

Era quase um Policarpo Quaresma. De estatura mediana, longo bigode acinzentado cultivado como se fosse patrimônio histórico de seu corpo, alinhava-se ao que de mais ufanista poderia existir. A barriga já saliente indicava a total sincronia com exercícios físicos. Mas os cabelos elegantemente grisalhos e cultivados com esmero indicavam um homem vaidoso. Não bebia. Não fumava. Incorruptível, como todo ser humano deveria ser. Casado com D. Sonia Tereza Cristina Bragança Pedreira, cultivava no sobrenome da cônjuge a esperança pela nobreza.

Laborava e residia na Manchester catarinense, que outrora intitulava-se cidade das bicicletas, mas que com o progresso, talvez o título mais adequado e fiel aos dias contemporâneos fosse o de cidade dos carros. Existiam às centenas de milhares, por todos os lados. Não havia casa que não contivesse pelo menos um. Ainda que financiado a duras penas.

O Douto representante do Ministério Público tinha por costume – peculiar, diga-se – o uso cotidiano de uma elegante gravata borboleta por entre seu paletó, eternamente fino e de valiosa procedência. Mas outro costume o fez famoso na cidade, naqueles idos de 1990. O que lhe perpetuou na história joinvilense como o “Dr. Chuvinha”. E tal alcunha não provinha de escárnios ou qualquer coisa do tipo, mas de sua fixação pela incompetência – e por que não dizer incongruência? – de órgãos públicos e empreendimentos particulares na proteção dos cidadãos daquela cidade no evento climático.

Não por acaso a cidade era conhecida como “Chuville”, sendo considerada uma das mais chuvosas do país e até constando na lista das mais chuvosas do mundo. Seu índice pluviométrico assemelhava-se à nossa falta de caráter, dizia o promotor.

Não se conformava com a falta de proteção para quem, por exemplo, chegasse a um lugar e não houvesse proteção contra a chuva. Por tal razão, resolveu ingressar com diversas ações civis públicas contra tal disparate. E assim o fez.

Ao receber a petição inicial, o juiz de direito da comarca ficou estupefato com a síntese daquela exordial: a imediata ordem judicial para que se providenciasse cobertura contra chuva, feita de policarbonato incolor e fixada com hastes de alumínio branco (exigência ministerial) entre a Prefeitura da cidade e o logradouro público, ou seja, uma enorme cobertura vinda da entrada do ente público até a rua.

Incrédulo, o togado resolveu pensar mais um pouco antes de indeferir de plano o pedido, a petição inicial e remeter ofício para a Corregedoria do Ministério Público. Afinal, a fixação do promotor contra a chuva era notória, mas não pensara que chegaria a tanto, a ponto de ingressar com uma demanda judicial. Mas vai que tivesse razão? Era melhor refletir primeiro.

No dia seguinte, em seu vasto gabinete, a assessora recebeu o juiz de direito com mais uma dezena de ações civis públicas iguais àquela. Eram os mesmos pedidos, mas para locais diferentes: o Mercado Público, o Ministério do Trabalho e Emprego, o Centreventos, os estacionamentos de supermercados, a rodoviária, o estádio municipal, todas as escolas, etc. Resumidamente, tudo o que um cidadão que chegasse de carro e tivesse que se deslocar entre seu automotor até o citado local, deveria ser protegido da chuva.

O juiz de direito não se conteve. Ligou pessoalmente para a secretária do promotor, perguntando por sua presença. À confirmação, foi ter pessoalmente com o mesmo.

Mas não teve jeito. Dr. João Solstício Pedreira odiava a chuva. E isso ficava bem claro. Tentou convencer o juiz que, obviamente, não se deu por convencido e voltou ao seu gabinete. Apesar de incrédulo, havia vários fundamentos para que seus requerimentos e pedidos fosse negados de plano.

O promotor bradou. Recorreu. Sustentou oralmente perante o Tribunal de Justiça, que confirmou as sentenças extintivas por absolutamente ser inviável tal “ideia”. Afora as fundamentações.

O trânsito em julgado não lhe tirou a fixação da ideia de que todos aqueles estabelecimentos, dito sociais, sejam públicos ou privados, mas averiguando-se sua função social, tivessem cobertura contra a chuva.

Não se deu por vencido.

Ingressou com uma ação civil pública direta ao ponto: a cobertura total, por uma lâmina de vidro ou outro material competente, de toda a cidade. Igual aos filmes futuristas, a petição de ficção científica foi motivo de várias manchetes, país afora. A imprensa, obviamente, adorou noticiar o “feito” e queria a todo custo entrevistar o promotor. Indeferimento de plano, inicial e total, com a fulminação da ação ainda em seu estado embrionário.

E uma chamada para uma conversa na Corregedoria…

Abatido, pediu licença médica. Foi viajar. Travou pelas areias marroquinas uma longa jornada de férias e meditação. Sua esposa adorava o deserto do Saara, bem como o de Atacama, mas preferiram esticar a viagem até o deserto de Mojave, por ficar mais perto dos cassinos, a fim de se divertir.

Voltou após seis meses de licença psicológica. Estava curado. Estava em pleno uso e gozo de suas faculdades mentais. Foi recebido por amigos e, inclusive, pelo juiz de direito com felicitações. Não tinha filhos, pelas mesmas razões de Brás Cubas. Mas tinha amigos, e estes lhe bastavam.

Reiniciou seus trabalhos e, como diligência, necessitou ir até o Paço Municipal. Infelizmente, coincidentemente e hilariamente, desaguou talvez a maior precipitação pluviométrica da história, em curto espaço de tempo. O trânsito ficou totalmente parado. Alagou tudo. Ônibus enguiçaram. As águas invadiram lojas. Pessoas vendo suas casas serem cobertas de lama e água. O carro do promotor encheu-se de água até cobrir os sapatos venezianos que adquirira recentemente. Um caos.

No dia seguinte, desaguou na mesa do juiz de direito a competente petição inicial pedindo a elevação de todas as casas e estabelecimentos comerciais de uma altura não inferior a dois metros de altura, com o fito de encerrar de vez com as enchentes da cidade conhecida por “Chuville”.

6/4/2016

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