Duelo gótico (Lufiego)

Duelo gótico

 Lufiego

 

I

A porta misteriosa estava recoberta de bolor dando a impressão de estar em adiantado processo de apodrecimento da madeira. O átrio no qual os malvados aguardavam sua vez para passar além da porta, adentrando no rescindo sinistro, exalava um fedor semelhante àquele dos túmulos muito antigos.

Na antessala para o ingresso no antro das mais baixas e malignas energias astrais, ela aguardava absorta em pensamentos doentios: não era possível que eles fossem felizes, precisavam sofrer, precisavam ser levados ao inferno das preocupações terrenas, não poderiam dormir, sorrir, viver em paz; precisavam ser destruídos pouco a pouco, pagando caro por ousarem não se ajoelhar a seus pés, ela que era o centro do mundo pelo qual todos transitavam e deviam se curvar.

A porta rangeu ao se abrir. Penetrou no reduto do mal, onde sombras se reuniam em torno de emblemas da infelicidade, da obsessão, do ódio, e reverenciavam a inveja como a maior das entidades obscuras. Além daquele ambiente sombrio, em compartimentos ainda mais interiores, ouvia-se gritos fantasmagóricos de almas profundamente sofredoras, presas num labirinto de dores e sofrimentos. Uma sinfonia inebriante para aquela mente atacada por diversas psicopatias. Fora em busca de auxílio das entidades obtusas a fim de atacar os inocentes, que odiava com todas as suas forças e energias impregnadas de egoísmo, intolerância e necessidade de destruição dos que não prestavam culto aos seus demônios. O bem, a alegria, a pureza, eram ofensivos, repugnando-lhe as entranhas apodrecidas. Eles, os ditosos seres humanos, que ousavam rezar a Deus, seriam atacados inicialmente na pessoa do pai de família. Fora encomendar um ataque, e a encomenda estava consubstanciada. Bebera um copo de sangue uterino derramado sob a carne inocente de um feto abortado. O azar estava lançado!

Longe dali o alvo de sua maldade preparava-se para mais uma noite de trabalho literário. A casa do escritor estava situada à beira-mar e continha pensamentos e sonhos de progressiva ascensão espiritual por meio da domesticação do intelecto. A rotina, enriquecida pela presença das pessoas amadas e de enormes cães de raça, companheiros inseparáveis em todas as horas, todos os dias, sempre com o mesma dedicação e afetuosidade, era marcada pela pesquisa, pelo estudo e pela produção de textos, de livros, que preenchiam aqueles tempos de poucos compromissos no mundo profano.

As forças malignadas estavam direcionadas e se aproximavam sorrateiras; de repente chegaram na forma de uma entidade sem rosto, sem corpo, mas presente, individualizada, pronta para atacar e levar seu alvo à destruição total. O escopo era destruir o ego, subjugar à vontade, danificar a mente e aprisionar o espírito daquele pai e avô amoroso, extremamente presente na vida de seus entes queridos, por quem vigiava em permanente estado de disposição e zelo.

No momento em que o mal chegara, estava sozinho em casa. Poucas luzes acesas. De repente o “rancor” penetrou no ambiente; sem forma, apenas uma sombra feita de energia maligna, uma entidade tão sofrida, que fez com que os poderosos cães de guarda se encolhessem temerosos no fundo do canil. No mesmo instante em que o fantasma horripilante se instalou na casa para atacar, como que vindas do além, outras quatro pessoas ocuparam posições em torno do escritor. A primeira, um homem robusto e decidido, com feições muitos sérias, adiantou-se em direção ao maligno, detendo o avanço daquela energia todo-rancorosa, carregada de tanto sofrimento e ódio, que contaminava a tudo de consternação. Fora detida pelo grandalhão na extremidade de um corredor que levava até o pequeno estúdio literário, na parte frontal da casa da qual se avistava o vastíssimo oceano. O escritor estava na porta do estúdio, a um passo do corredor em oposição à entidade satânica e, embora não fosse visível, como se vê um corpo físico, era percebida como se percebe uma presença que fede, grita, se debate, pragueja e ameaça. Era impedida de avançar por aquele gigante de quase dois metros de altura, cuja pessoa era perfeitamente visível e se apresentava normalmente vestida, com a camisa para dentro das calças afiveladas por um cinto de couro, usando sapatos pretos e tendo o cabelo curto e corretamente penteado.

Sua missão era clara: antepor-se ao espírito do mal e barrar sua progressão em direção ao escritor. Porém, não tinha meios de submetê-lo, podia apenas impedir o seu avanço. Uma segunda presença, que emanava a principal força de oposição ao mal, estava atrás do escritor e não se mostrou à vista, tampouco disse palavra, mas estava ali certamente, coordenando os outros três. Junto ao escritor, de braços dados com ele uma mulher e um homem, com nítida disposição de íntimos amigos, talvez parentes de longa data, de encarnações anteriores, pois eram absolutamente familiares, embora não tivessem falado seus nomes. Seguravam o escritor e o animavam a enfrentar o mal. Defenda-se, reaja, diziam com voz firme e amistosa. Sinta a força do bem, olhe para o mal, dirija a esse monstro de sofrimento e angústia a contraenergia do bem. Canalize-a por meios de sons guturais e direcione-os ao “rancor”. És mais forte e estamos aqui para te apoiar falavam ao tempo em que pelo olhar e expressões de seus rostos transmitiam eflúvios de simpatia e carinho ao escritor.

E assim se deu o embate entre o mal, que vinha para destruir, enviado pela maligna bruxa doentia, e o bem, que reagia amparado por pessoas amorosas, que funcionavam como inabaláveis anjos da guarda. O escritor direcionou sua energia de combate em forma de sons guturais ao “rancor” e o duelo se desenrolou num frenesi apavorante, mas determinado. Vocalize o som poderoso contra o mal, diziam o homem e a mulher; no rosto daquela mulher querida, um sorriso indescritível, como se fora um testemunho de certeza da vitória. E o duelo de sons inefáveis perdurou por longos instantes, e de maneira intuitiva o escritor foi modulando o som que saia de sua garganta como flechas contra o inimigo invasor, como lanças poderosas arremessadas certeiras contra o “rancor”, que tentava gritar mais alto, que se contorcia, que exalava um odor nauseabundo, estonteante, que praguejava as mais horrendas ameaças destrutivas. O escritor tinha a sensação de que, ainda que saísse vitorioso do porfiado embate contra o mal, teria a garganta e suas cordas vocais comprometidas para o resto da vida, tão grande era o esforço que despendia. Não iria desistir; existiam apenas duas alternativas: sucumbir ou vencer. Sucumbir não era uma hipótese aceitável, e ele não estava sozinho, embora os presentes não pudessem tomar seu lugar na reação ao maligno.

Quando a garganta do escritor estava esgaçada ao máximo e os sons guturais atingiram o ápice de suas potencialidades, fazendo com que o “rancor” agora gritasse de agonia, num piscar de olhos tudo mudou. O ambiente voltou à normalidade, tornou-se leve novamente, descarregado de qualquer energia obscura. O escritor olhou em sua volta e já não via aqueles que o socorreram no pior embate de sua existência terrena, contra forças sobrenaturais destrutivas, três dos quatro haviam desaparecido sem despedidas, apenas o grandão ainda ali permanecia. Chamou o escritor para postar-se ao seu lado, no exato local em que o “rancor” fora derrotado, e apontou para o céu, visualizado através da grande janela, mostrando milhares de estrelas que resplandeciam. Tudo novamente era tranquilidade e harmonia. Longe dali, numa alcova imunda, com as baratas subindo às paredes, a bruxa consumida por suas psicopatias se contorcia de raiva, ao tempo em que ouvia assustada vozes vindas das profundezas tenebrosas, que lhe cobravam a conta.

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